Quatro duplas formadas por cachorro e adestrador trabalham em operações no RS e outras seis estão em treinamento
LUIZ DIBE GZH
A conexão entre humano e cão é há muito conhecida, a ponto de o animal, muitas vezes, ser chamado de “melhor amigo do homem”. Nas atividades de busca e salvamento, esta ligação tem como designação a palavra binômio: como se cachorro e adestrador fossem um só.
No próximo sábado (15), o êxito desta parceria será celebrado com a passagem dos 20 anos do Canil da Companhia Especial de Busca e Salvamento (CEBS) do Corpo de Bombeiros. Atualmente, o grupamento, que tem sua sede no Cais Mauá, em Porto Alegre, mantém quatro binômios prontos para atuar em operações decorrentes de desastres naturais ou estruturais, além de seis outras duplas em treinamento.
— Havia no passado o entendimento de que se tratava de uma importante ferramenta, mas hoje temos uma visão mais significativa. Trata-se de uma comunhão, uma relação de confiança que se estabelece entre humano e animal sob o propósito especial de preservar e salvar vidas — define o comandante da CEBS, tenente-coronel Ricardo Mattei Santos.
O emprego dos binômios pelo grupamento dos bombeiros teve sua história constituída de uma forma um pouco casual. Em 2003, o sargento Gerson Meireles, que era soldado à época, imergiu no ambiente de criação de cães, motivado pela ideia de incorporar os talentos caninos ao trabalho dos bombeiros militares.
— Não tinha esta determinação oficialmente. Foi tudo por iniciativa de algumas pessoas que acreditavam nesta possibilidade. Eu mesmo fui atrás do primeiro candidato ao treinamento, em canis da Região Metropolitana — conta Meireles.
A primeira busca
O escolhido tinha o destino traçado: nasceu num criadouro de labradores no dia 2 de julho, Dia do Bombeiro Brasileiro. Levou o nome de Luck, sorte na língua inglesa.
Nos primeiros meses de vida e treinamento, Luck viajava de ônibus, dentro de uma caixa de papelão ajeitada por seu tutor bombeiro. Chegavam ao quartel e dedicavam as horas livres a testes de habilidades e estudos para aprimoramento dos treinos.
— A vida melhorou um pouco e eu comprei um carrinho. Passamos a vir para o trabalho de Fusca. Depois de um certo tempo, já tínhamos treinado bastante. Havia um desenvolvimento perceptível, mas nunca havia sido colocado em prática — lembra o adestrador.
A oportunidade surgiu naquele mesmo ano. A Polícia Civil fazia buscas em um caso de desaparecimento, que, segundo investigação, tinha características de homicídio com ocultação do cadáver. O caso ocorreu no Morro da Cruz, na Capital.
— Fomos chamados pelo delegado do caso. Chegamos ao local das buscas e havia dezenas de policiais civis e militares trabalhando, veículos de imprensa e gente da comunidade. Quando vi todo aquele pessoal, congelei na viatura. Pensei: “Imagina se falharmos diante de todas estas pessoas. Vamos virar piada e o trabalho todo vai por água abaixo” — recorda o sargento Meireles.
Segundo ele, o responsável pela investigação se aproximou e disparou:
— São vocês que vão encontrar o cadáver pra mim?
Luck entrou em ação ao lado de seu treinador.
— Ele andou no terreno e parou ao lado de uma cocheira. Começou a farejar com mais intensidade. Não tive nem sequer tempo de analisar a situação. Me perguntaram: “É aí? Podemos começar a cavar?” — lembra o bombeiro.
Timidamente, Meireles assentiu, sem falar:
— Sem convicção nenhuma. Mas o que eu poderia dizer?
Minutos se passaram. Os policiais impacientes se entreolhavam, enquanto cavavam o buraco.
— Lá pelas tantas, uma das pás ressonou um barulho diferente, seco, mais audível. Saiu o peso do mundo de cima dos meus ombros. O corpo tinha sido encontrado — diz, em tom que ainda é de comemoração.
No dia seguinte, o comandante da CEBS chamou Meireles e outros para uma reunião. Vieram duas revelações: a primeira era de que os participantes da iniciativa estavam sendo congratulados pelo êxito do trabalho. A segunda era de que a CEBS teria, dali por diante e oficialmente, a tarefa de treinar cães e homens para se tornarem os binômios que hoje prestam relevantes contribuições à sociedade gaúcha.
Para se ter uma ideia, entre 2018 e o primeiro semestre de 2023, as equipes atuaram em 258 ocorrências de busca, salvamento ou encontro de restos biológicos humanos.
Conforme o tenente-coronel Romeu Rodrigues da Cruz Neto, primeiro comandante do Canil da CEBS e atual chefe de Logística do Departamento de Comando e Controle Integrado da Secretaria da Segurança Pública (SSP) do Estado, a experiência da qual ele fez parte transformou uma cultura.
— A gente havia ficado impressionado com a utilização dos cães nos resgates após a tragédia do World Trade Center, em Nova York, e achou que poderia ser útil para os bombeiros gaúchos também. O tempo nos mostrou algo muito maior: a superação de preconceitos para a criação de uma nova cultura de efetividade no trabalho de segurança, de visão institucional e de reconhecimento pela sociedade. Em um aspecto ainda mais significativo para nós, uma mudança de visão de vida, relação com os animais e com o meio ambiente — define Cruz Neto.
Modelos de treinamento
De acordo com o sargento Alexandre Furtado, as definições técnicas de treinamento aplicadas ao trabalho de segurança pública estão organizadas em três modalidades principais. Entenda abaixo cada uma delas:
Resgate de pessoas vivas
O cão é treinado para encontrar pessoas perdidas em ambiente natural, mesmo sob condições climáticas e terrenos hostis, para localizar vítimas de desastres estruturais, como deslizamentos que atingem moradias ou acidentes em edificações.
Um exemplo desta aptidão é o labrador chocolate Bono. Brincalhão com sua bolinha de tênis sempre na boca, mesmo aos 10 anos e perto da aposentadoria, este inteligente cachorro atuou em diversas ações no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, como no caso do escoteiro desaparecido no Cânion da Fortaleza, e integrou a força-tarefa nas buscas pelos sobreviventes da tragédia envolvendo a ruptura da Barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, em 2019. Trabalhou ao lado de seu adestrador, o sargento Gerson Meireles.
O treinamento consiste em registrar odores humanos em diferentes objetos para que o cachorro aprenda a identificar e rastrear o caminho percorrido pela pessoa perdida e determinar sua localização. São utilizados brinquedos e peças de roupa com cheiro deixado pela transpiração, contato com a pele e resíduos de saliva, que são frequentemente renovados para manter o odor vivo.
São utilizados percursos planejados, veículos de terra, água e ar, diferentes terrenos para que o animal jamais tenha objeção a investigar os potenciais cenários de um salvamento.
Resgate de restos biológicos humanos
Os animais são ensinados, por meio de experiências pelo contato com odores e, sobretudo, gases provenientes da decomposição de tecidos humanos, a localizar e apontar a presença de material biológico sem vida.
A prática é realizada para encontro de cadáveres abandonados ou escondidos por criminosos e também para busca de pessoas falecidas em desastres.
Uma das integrantes da CEBS com tal qualificação é a Guria, uma simpática representante da raça pastor belga malinois. A bichinha é treinada pelo sargento Alexandre Furtado Silveira, que a selecionou em uma ninhada de pastores aos 45 dias de vida e acompanha diariamente seu desenvolvimento até hoje.
Para demonstrar atividades e expressar a relevância da atuação, o tutor da cachorrinha, que está com quatro anos, administra um perfil institucional na rede Instagram, chamado @guriabombeira, onde há fotos e relatos.
Buscas por odor específico
A terceira modalidade de treinamento tático realizada na CEBS é a das buscas pelo odor específico de pessoas, definida quando o alvo da procura é uma pessoa em especial. Tal qualificação se assemelha às representações que são vistas em filmes e séries de ação policial, nas quais o treinador oferece uma peça de roupa da pessoa procurada e o cão parte em busca de sua localização.
Na unidade dos bombeiros da Capital, a pequena Melt, de apenas quatro meses de vida, está em treinamento para adquirir esta habilidade.
Conforme seu adestrador, soldado bombeiro Eugênio Goulart, o treino consiste em determinar um alvo, normalmente designado como “figurante” na ação, o qual geralmente é um outro adestrador que esteja disponível.
Esta pessoa deve se esconder em diferentes cenários, a diversas distâncias e relevos, utilizando artifícios como obstáculos físicos, obstrução do caminho ou do contato visual, para que Melt resolva o enigma e encontre o alvo.
O odor deste figurante é impregnado em algum objeto para ser reconhecido. Ao final, diante do sucesso no encontro do alvo, os bichinhos recebem recompensas, que podem ser carinhos, brinquedos ou guloseimas.
Tempo de trabalho e aposentadoria
De acordo com os treinadores da CEBS, cada animal tem seu tempo de atividade e reconhecimento ao descanso após atingir estágio avançado de maturidade, segundo as próprias características biológicas. Alguns trabalham por cerca de 10 anos, até chegarem a um perceptível declínio de seu vigor físico e sensorial. Após a jornada de serviço prestado à sociedade, invariavelmente os cães permanecem até o final da vida com seus tutores, estabelecendo o fechamento no elo de cumplicidade e amizade criado no início do treinamento.
É o caso do primeiro personagem apresentado na reportagem, precursor da atuação de cães junto aos bombeiros gaúchos, o labrador preto Luck. Quando faleceu, o herói de inúmeros resgates ao lado do sargento Meireles foi cremado.
— Suas cinzas estão em uma urna. Pedi aos meus familiares, pois ninguém vive para sempre, que ao final da vida eu seja cremado. Nossas cinzas sejam unidas e depositadas próximo à Pedra do Segredo, no Cânion da Fortaleza, em Cambará do Sul. Vamos fertilizar juntos nova vida na natureza — aponta o adestrador.
Futuro da Cebs é virar batalhão
Atual comandante do Canil da Companhia Especial de Busca e Salvamento, a capitã Cátia Cilene Gonçalves revela que há esforços para elevar a CEBS ao status de batalhão, o que definirá mais acesso a recursos humanos, animais, materiais e estruturais.
— Estamos prestes a nos tornarmos um batalhão, o que demonstra a importância desta atividade apaixonante à qual nos dedicamos aqui. Há muita alegria por parte de todos ao sabermos como os resultados trazem benefícios e reconhecimento da sociedade — analisa a capitã formada na primeira turma de oficiais do Corpo de Bombeiros Militares do Rio Grande do Sul.