- Leandro Prazeres e Mariana Schreiber
- Role,Da BBC News Brasil em Brasília
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, começou a semana em tom assertivo.
Na segunda-feira (2/10), concedeu uma entrevista coletiva para falar sobre o recém-lançado Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas (ENFOC).
O plano foi anunciado em meio uma enxurrada de críticas ao governo federal e ao PT pela crise na segurança pública na Bahia.
Uma das principais vitrines do partido, no comando do governo local há 16 anos, o Estado enfrenta uma combinação de altos índices de violência e letalidade da polícia com embates crescentes entre facções por controle de território.
“Às vezes pensam que a gente tem uma varinha de condão que se chama intervenção federal. Amigos: intervenção federal é coisa séria, regrada pela Constituição”, disse o ministro.
Três dias depois, a atuação de grupos criminosos voltou a levar Dino a se manifestar. Desta vez, um crime ousado em plena área nobre do Rio de Janeiro que afetou diretamente aliados do governo.
Bandidos assassinaram a tiros três médicos em um quiosque na praia na Barra da Tijuca, um dos endereços mais cobiçados da cidade. Entre as vítimas, está Diego Ralf Bonfim, irmão da deputada federal Sâmia Bonfim (Psol-SP) e cunhado do deputado federal Glauber Braga (Psol-RJ), ambos apoiadores do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Um quarto médico que estava no quiosque ficou ferido e está hospitalizado.
Imagens apontam que o crime foi uma execução, mas as investigações ainda não indicaram quais as motivações. A principal hipótese investigada é a possibilidade de que os executores tenham confundido o alvo na hora da ação.
O governo Lula acionou a Polícia Federal para acompanhar o caso e averiguar se há algum sinal de motivação política – o próprio Dino foi quem fez o anúncio.
A execução dos médicos e um agravamento da crise na Bahia são vistas por especialistas como episódios mais recentes de como a segurança pública, sob o comando de um dos ministros mais populares do governo do presidente Lula, se transformou em um calcanhar de aquiles da atual administração.
A percepção de que a segurança pública é um dos vespeiros para o governo Lula, – além, claro, de ser um ponto vulnerável para as administrações estaduais – ganhou novas evidências no mês passado.
Uma pesquisa do Datafolha mostrou que a violência escalou como preocupação dos brasileiros e lidera o ranking de problemas empatado com a saúde: 17% citaram a insegurança como o maior problema do Brasil, contra 6% em dezembro de 2022, o mais recente levantamento com essa pergunta.
Já uma pesquisa realizada pela Atlas Intel pediu aos entrevistados para avaliar a atual gestão em diversas áreas.
Na segurança pública, só 20% qualificaram como ótima a performance do governo, 16% como boa. Na outra ponta, 47% avaliaram como péssima a gestão na área, 9% como ruim e 9% como regular.
Para comparação, 38% avaliaram como ótima a atuação em relações internacionais e 35% fizeram o mesmo com o meio ambiente.
Especialistas e políticos ouvidos pela BBC News Brasil apontam supostas falhas na gestão do tema dentro do governo, como a falta de políticas estruturantes e a hesitação em promover, por meio de projetos de lei, mudanças no funcionamento das polícias civis e militares.
Eles ponderam, no entanto, sobre a natureza e complexidade da crise de segurança que se arrasta há anos e lembram que muito da área não está na alçada direta do governo federal.
Crise antiga com efeitos atuais
O especialista em segurança pública Daniel Cerqueira, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), disse à BBC News Brasil que a crise na segurança pública brasileira enfrentada por Dino agora é um problema antigo que reflete o fracasso de diferentes gestões, federais e estaduais.
“As crises que nós vemos aqui e acolá, na Bahia, no Rio, a cada hora em um lugar, é resultado exatamente dos equívocos históricos, da inação histórica no campo da Segurança Pública do Brasil. Tanto a esquerda quanto a direita não sabem lidar com o problema”, sustenta Cerqueira.
Apesar da forte retórica do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) contra a criminalidade, ele diz que seu governo não adotou políticas estruturais de fortalecimento da segurança pública e ficou, principalmente, no aumento de armas nas mãos de civis.
“(Ele fez isso) sendo que todos os estudos científicos na área mostram que mais armas geram mais violência”, critica Cerqueira.
Por outro lado, ressalta o especialista, a crise mais aguda que a Bahia atravessa hoje também deixaria claro o fracasso das gestões petistas – o PT governa o Estado desde 2007.
Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a Bahia foi o estado com o maior número de mortes violentas intencionais em 2022, com 6.659. O Estado tem a segunda maior taxa de mortes violentas por grupo de 100 mil habitantes do Brasil, 47,1, atrás apenas do Amapá, com uma taxa de 50,1 mortes por 100 mil habitantes.
O combate a esse tipo de crime organizado, diz Cerqueira, depende da atuação de instituições federais, como a PF e o Ministério Público Federal, para investigar com inteligência e independência os atores poderosos envolvidos e as redes de fornecimento de drogas, armas e de lavagem de dinheiro – temas que o governo promete atacar com o novo plano de combate às organizações criminosas.
Com pouco mais de nove meses de gestão, Cerqueira diz que ainda é cedo para o governo Lula mostrar resultados concretos nesse campo.
Ele elogia providências adotadas rapidamente para reverter a flexibilização do acesso a armas no governo Bolsonaro, mas critica a repetição de ações emergenciais historicamente pouco eficazes, como o envio da Força Nacional de Segurança ao Rio de Janeiro, que acaba de ser anunciado por Dino.
Atendendo a um pedido do governador Cláudio Castro, o Ministério da Justiça anunciou de 300 agentes da Força Nacional e 270 da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que chegam ao Rio no sábado (7/10) para uma operação no Complexo da Maré, região conflagrada pela atuação de milícias e facções criminosas do tráfico de drogas.
Em uma entrevista coletiva na sexta-feira (06/10), Castro disse que o Estado lida com uma “verdadeira máfia”.
“Não estamos falando mais de uma briga de milicianos e traficantes. Estamos falando de uma verdadeira máfia, uma máfia que tem entrado nas instituições, nos poderes, nos comércios, nos serviços e no sistema financeiro nacional.”
A Força Nacional também já foi usada para lidar com outra crise de segurança pública em outro governo petista, o do Rio Grande do Norte, comandado pela governadora Fátima Bezerra, em abril deste ano.
Para Cerqueira, porém, o envio de algumas centenas de policiais, que desconhecem a dinâmica do território em que vão atuar, não tem eficácia.
“O foco de curto prazo, para atacar os sintomas, teria que ser muito forte em utilizar as organizações que o governo federal tem, com inteligência e tecnologia, para ajudar os Estados. Força Nacional na rua não serve para nada”, critica.
“Mas essa agenda não pode se esgotar nisso (nas ações de curto prazo), ou vamos ficar sempre nessa política de enxugar gelo”, acrescenta.
Cerqueira defende o desmembramento do Ministério da Justiça para criação de uma pasta específica da Segurança Pública, que retomaria a implementação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), elaborado no governo de Michel Temer e depois abandonado.
Na sua visão, o governo federal deve apoiar os Estados de três formas. Uma delas é identificando boas políticas já adotadas. Além disso, diz, o governo federal precisa atuar na qualificação dos policiais e garantir financiamento para as políticas de segurança pública.
Disputa entre alas do governo
Duas fontes com trânsito no Ministério da Justiça ouvidas pela BBC News Brasil em caráter reservado apontam que, dentro do ministério comandado por Flávio Dino, haveria uma divisão entre duas alas. Uma delas é focada em desenhar políticas públicas de mais longo prazo para o setor.
Essa ala teria maior atuação na Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) e na Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad).
A outra ala seria formada por integrantes com um perfil mais ligado ao uso de operações e intervenções federais.
Essas fontes avaliam que, ainda que haja equipes desenhando políticas a serem implantadas, a ala mais operacional acabou ganhando proeminência à medida em que as crises estaduais eclodiram ao longo do ano levando o governo a dar respostas imediatas como no caso do Rio Grande do Norte e, mais recentemente, no Rio de Janeiro.
Durante o lançamento do programa para o enfrentamento de organizações criminosas, a gestão de Dino fez questão de divulgar que, apesar das críticas externas, a tendência para 2023 é de queda no número de mortes violentas.
Segundo o governo, entre janeiro e agosto deste ano, foram registrados 24.729 homicídios dolosos no país, uma queda de 3,8% em comparação com o mesmo período de 2022.
Parlamentares cobram governos federal e do Rio
Parlamentar de oposição, o presidente da Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, Ubiratan Sanderson (PL-RS), faz duras críticas à política de segurança do governo Lula.
Na sua avaliação, o Ministério da Justiça foi “desestruturado” com a retirada de especialistas em segurança pública e a entrada de políticos na pasta. Ele cita como exemplo o ex-deputado e ex-secretário da Casa Civil de Pernambuco Tadeu Alencar (PSB), atual Secretário Nacional de Segurança Pública.
Questionado sobre a atuação de Cláudio Castro, governador do seu partido, reconhece falhas na política de segurança do Rio.
“O Rio de Janeiro passa por um caos na segurança pública não é de hoje. Vem de 30 anos. Falta de investimento nas polícias, policiais desmotivados com baixos salários e sem condições de trabalho”, afirmou o deputado, que é policial federal licenciado.
“Um descaso por todos os governos, e o governo de hoje, inclusive. Mesmo esse governo sendo do PL, posso dizer que não está fazendo um projeto positivo e efetivo de enfrentamento ao crime organizado do Rio de Janeiro. E se daí o Estado não faz, e o governo federal é pior ainda, aí a população fica à própria sorte”, acrescentou.
Para a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ), a execução dos médicos no Rio de Janeiro indica não uma crise de segurança que afeta a gestão Lula, mas um grande desafio conjunto para o governo federal e o governo do Rio de Janeiro.
À BBC News Brasil, Petrone disse que o crime a fez reviver o trauma do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), execução que ocorreu em 2018 e até hoje não foi totalmente esclarecida. Ela defendeu aguardar com “prudência” os resultados das investigações .
“Eu acho que essa barbaridade que aconteceu explicita o que é a complexidade (da atuação criminosa) no território no Rio de Janeiro. Sem dúvida, enfrentar o tema da segurança pública é um desafio para o governo federal e pro governo do Estado também”, ressalta.
“O que não dá é para as respostas serem as mesmas dadas há décadas. Seguir com o mesmo caminho, seja de intervenção, seja de fortalecimento de uma lógica militarizada. Tem que ir para um caminho de controle de armas e munições, de pensar como enfrentar o principal problema que é o domínio armado dos territórios e a relação desse domínio com a política e o poder econômico”, disse ainda.
Urgência versus estratégia
Para o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, a gestão de Flávio Dino, que é cotado para ser indicado a uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), foi marcada pelos temas urgentes.
“A gestão foi demandada pelo factual. O ideal é que o governo tivesse lançado políticas estruturantes logo no início, mas ainda dá tempo. Reconheço que há um esforço grande nesse sentido, mas é hora de se dedicar a mudar a governança do aparato de segurança pública no país”, afirmou Lima à BBC News Brasil.
O especialista diz que o governo deveria implementar mecanismos para melhorar a atuação do chamado “policiamento de proximidade” normalmente realizado pelas polícias militares ou guardas municipais.
“O governo poderia oferecer formação e repasses adicionais para isso. Outra coisa que o governo deve fazer é propor uma mudança nas carreiras policiais e na escala de trabalho. Só que isso passa pelo Congresso. O ponto é que só o Ministério da Justiça teria força para pautar essa discussão no Parlamento”, afirma.
Em nota, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) afirmou que vem alinhando “ações propositivas e ações reativas” para que se tenha “uma política completa de Segurança Pública” e listou as principais iniciativas da pasta.
O ministério negou que realize ações pontuais, defendendo que “na verdade são operações integradas com os Estados ou com as Forças Armadas, longamente planejadas e trazendo muitos benefícios”.
“Como exemplo, lembramos a redução do desmatamento na Amazônia, a diminuição de homicídios em relação ao ano passado, assim como o recorde de bloqueio de bens das quadrilhas, descapitalizando-as”, afirmou o ministério.
Em relação à reestruturação das carreiras de policiais, o ministério afirmou que “trabalhou nas reestruturações das carreiras da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Penal”.
Sobre reestruturação de carreiras policiais estaduais, a pasta afirma que colaborou na construção dos textos que tramitam no Congresso sobre o tema, tanto para a Polícia Civil quanto para a Polícia Militar. “Comunicação oficial já foi enviada às casas legislativas solicitando prioridade na análise e votação dos textos”, diz o texto.
A pasta reagiu ainda ao que chamou de “críticas genéricas” ao trabalho do ministério. “Reiteramos que estamos à disposição para que aqueles que desejam ultrapassar os limites das críticas genéricas possam oferecer sugestões efetivas para o aperfeiçoamento do nosso trabalho”.
“Estamos sempre dispostos a aprender com especialistas e com os profissionais da segurança”, segue a nota, que também frisa a discordância com aqueles que desejam uma relação “de conflitos eternos com os policiais, o que constitui um monumental erro”, finalizou.