Diante dos últimos acontecimentos envolvendo o bilionário Elon Musk e o Min. Alexandre de Moraes, na controvérsia sobre decisão de retirada de postagens da plataforma X (antigo twitter) e, mais recentemente, sobre o “QG Antifake News”, existente no TSE (matéria de O Sul, 21.04.24), fui revisitar a obra Areopagítica – Discurso pela Liberdade de Imprensa ao Parlamento da Inglaterra, de John Milton, de novembro de 1644. Um ano antes, Milton publicara “A Doutrina e Disciplina do Divórcio”, em que defendia a dissolução do casamento pela “incompatibilidade de temperamentos”, e não apenas pelo adultério, com se dava à época. Em razão disso, o Parlamento editou a Portaria Parlamentar para a Impressão (de 1643), que estabelecia censura para livros difamatórios à religião e ao governo, proibindo o livro de Milton. No discurso contra a censura, lido ao Parlamento, durante a guerra civil inglesa, John Milton faz a defesa da liberdade de imprensa e contra a censura prévia, argumentando que ela não é eficaz para suprimir ideias prejudiciais e que é importante permitir a livre circulação de ideias para que a verdade possa prevalecer, pois os leitores têm o discernimento necessário para julgar, por si mesmos, o que é bom ou ruim, e que a censura sempre esteve associada à tirania. O bem e o mal estão inextricavelmente ligados, não sendo possível coibir apenas um deles sem atingir o outro.
O conhecimento e a verdade, dizia Milton, surgem do contato que existe de bom e mau dos livros, cabendo ao leitor buscar o que neles mais lhe agrada. Os livros são verdadeiramente combatidos quando suas ideias ficam expostas, e não quando permanecem ignoradas. É impossível tornar as pessoas virtuosas pela coerção externa, já que o combate à corrupção moral se faz com o poder da escolha racional. A censura, avalia Milton, impede que se exerça a faculdade do juízo e da escolha. O conhecimento não pode corromper, nem por conseguinte, os livros, se a vontade e a consciência não se corromperem.
Não desconheço que a Primeira Emenda da Constituição Americana determina que o “Congresso não fará lei relativa a estabelecimento de religião ou proibindo o livre exercício desta; ou restringindo a liberdade de palavra ou de imprensa;…”. O direito constitucional dos EUA quase sempre tutela o “hate speech”, mesmo se tal discurso acarreta custos consideráveis para a dignidade, honra ou igualdade dos atacados ou para a civilidade da discussão pública e a paz pública. Nos EUA, a liberdade de expressão é, em regra, direito prioritário diante de outros interesses e valores constitucionais – um “preferred right”. No Brasil a nossa CR, apesar de proibir a censura prévia – arts. 5°, IV, V, IX; 220 e §1° – declara serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e imagem das pessoas (art. 5°, X), não havendo supremacia de um direito fundamental sobre outro. Portanto, não há de se tolerar ataques àquelas inviolabilidades ou ao discurso de ódio contra os direitos fundamentais e às minorias.
No entanto, a restrição do direito fundamental à liberdade de expressão, norma fundamental sem reserva legal, deve se dar pela atividade legislativa do Parlamento, legitimado pelo Povo para esse tipo de restrição, mediante lei que defina o que é “fake news”, “discurso de ódio”, e em que circunstâncias concretas se poderá restringir ou proibir a liberdade de expressão dos cidadãos, e não sem observar a garantia do devido processo legal, conquista da civilização ocidental, através do poder de polícia do TSE, por mais bem intencionado que seja o grupo reunido para tanto, uma vez que esse poder de polícia deve ficar adstrito especialmente à propaganda eleitoral, notadamente em ano eleitoral.
Como disse Milton, verdade e entendimento não são produtos que se possam ser monopolizados, definindo o que os cidadãos possam ou não ler, estabelecendo-se uma tirania do saber, a menos que aos censores se lhes atribua a graça da infalibilidade.
Nesses tempos de “modernidade líquida, fluida e infinitamente mais dinâmica”, nas palavras de Zygmunt Bauman, eu, particularmente, prefiro uma “liberdade de expressão sólida”.
Des. Amilcar F.F. Macedo – Ex-presidente do TJMRS (gabinete-amilcar@tjmrs.jus.br).