A maior tragédia climática a atingir o Rio Grande do Sul, que deixa mais de uma centena de mortos e obriga pessoas a abandonarem suas casas, impacta também na violência. Reforços de fora do Estado e da Força Nacional vêm sendo recebidos
LETICIA MENDES GZH
- Em Porto Alegre, drones da Guarda Municipal são usados dia e noite para monitorar as áreas inundadas;
- Além da Capital, municípios da Região Metropolitana recebem reforços de policiamento para prevenção contra saques;
- Desde o início das cheias no Rio Grande do Sul, foram registados casos de estupro de crianças em abrigos;
- Brigada Militar dá exemplo de fake news que fez o policiamento gastar tempo e energia que poderiam ser usados em apoio à população.
No bairro Mathias Velho, em Canoas, onde ruas se transformaram em canais profundos de água turva durante as inundações que atingem o Rio Grande do Sul, traficantes usaram uma embarcação para transportar 11 quilos de cocaína nesta semana. A droga, acondicionada numa caixa térmica e embalada, foi levada de barco até o bairro Mato Grande, também alagado. De lá, seria removida por outra parte do grupo até um apartamento, e mais tarde distribuída. A empreitada foi descoberta pela polícia, que apreendeu o carregamento, com valor estimado em R$ 350 mil.
Em meio à maior tragédia climática vivenciada no Estado, a criminalidade também se adapta e as forças de segurança enfrentam novos desafios. O policiamento embarcado, que se tornou uma das prioridades da Brigada Militar e da Polícia Civil, é uma das estratégias para tentar conter os crimes nas áreas mais atingidas. Foi assim que a equipe do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc) realizou a apreensão das drogas. Da mesma forma, policiais militares localizaram cerca de 15 quilos de maconha e crack também em Canoas.
Até a manhã deste domingo (12), 54 pessoas tinham sido presas no Estado por crimes como saques, roubos, vandalismo e estupro. Desses, 11 casos aconteceram dentro dos abrigos. Pelo menos seis pessoas foram presas suspeitas de serem autoras de crimes sexuais em locais de abrigamento – a maior parte eram familiares das vítimas.
— A segurança pública tem dois focos: combate ao crime, que é coibir especialmente os saques, onde já houve uma redução, e a principal prioridade que é combater crimes dentro dos abrigos e garantir a segurança das pessoas que estão lá — afirma o secretário de segurança do Estado, Sandro Caron.
Áreas alagadas
Com moradores e comerciantes acuados pela chegada das águas, bairros da Capital, como o Centro Histórico, a Cidade Baixa e Menino Deus foram esvaziados. A cena se repetiu na zona norte, em áreas como Sarandi, São Geraldo, Vila Farrapos e Humaitá. A desocupação trouxe a preocupação com os saques, após se replicarem relatos de que criminosos estavam se aproveitando da situação. A avaliação é que esse tipo de crime arrefeceu, embora ainda cause preocupação.
Em Porto Alegre, cinco drones da Guarda Municipal são usados para monitorar as áreas inundadas, de dia e à noite. Os aparelhos possuem sensores térmicos, para detectar movimentos noturnos. Essas áreas também receberam o patrulhamento em embarcações com policiais, em rondas rotineiras.
— O desafio é termos um patrulhamento robusto nas áreas alagadas, inóspitas. Temos aumentado, à medida que as embarcações vão sendo alcançadas. Tínhamos uma frota de barcos na BM limitada, mas vêm se agregando botes de outras polícias militares — explica o comandante-geral da BM, coronel Cláudio Feoli.
A Polícia Civil – que contava somente com dois botes para ações pontuais – também recebeu apoio com barcos de voluntários e de outras corporações. Além dos bairros da Capital, uma das preocupações é Canoas, especialmente no Mathias Velho, onde houve casos de roubos de barcos e criminosos armados intimidando moradores e voluntários. Policiais circulam nas embarcações para fazer a segurança dos resgates.
— Precisamos reprimir a criminalidade que porventura surja e passar para a sociedade uma sensação de segurança. Que as pessoas não entrem num processo de achar que as regras terminaram e não há controle social — diz o chefe da Polícia Civil, delegado Fernando Sodré.
Região Metropolitana
Eldorado do Sul, que ficou quase totalmente submersa, foi uma das primeiras a ter relatos de saques. Foi necessário enviar a tropa de choque numa aeronave e embarcações. Na sexta-feira (10), a Polícia Federal realizou as últimas tentativas de resgates no município, e depois disso deve direcionar seus esforços para a prevenção de crimes. Outros municípios da Grande Porto Alegre, como Guaíba, São Leopoldo e Novo Hamburgo, também receberam reforços de policiamento nos últimos dias, após terem sido afetados pela enchente.
— Num primeiro momento, na Região Metropolitana observamos saques e roubos, colocamos força total de policiamento ostensivo e temos substancial redução de relatos e de problemas de segurança — garante o governador Eduardo Leite.
Há outros crimes que ensejam preocupação, como os golpes que vêm sendo aplicados por criminosos em meio à tragédia. Quando a água recuar, a preocupação é com a segurança dos moradores no momento de retorno e com o controle do chamado “turismo de tragédia”. Doutor em Políticas Públicas, consultor no BID e diretor-executivo do Instituto Cidade Segura, Alberto Kopittke ressalta que é necessário se preparar para novas catástrofes climáticas.
— É preciso fazer um profundo relatório de aprendizados. Precisamos aprender e aprender rápido. Talvez tenhamos semanas ou meses para lidar com a próxima. As telecomunicações, treinamentos, equipamentos, precisam ser repensados. É preciso um estudo de risco dos presídios, e elaborar um plano de risco total muito sério, de como serão as catástrofes e como as forças de segurança vão lidar com isso. O Estado vinha muito bem em indicadores. Mas temos que aprender com a lição que estamos tendo agora — avalia.
Desafios
GZH ouviu especialistas e autoridades da área para saber quais outros desafios devem ser enfrentados pelo Estado daqui para a frente. Confira:
Segurança nos abrigos
O RS conta, até a manhã deste domingo, com 722 abrigos espalhados pelo Estado – somente na Capital são cerca de 162, onde estão acolhidos 14,2 mil pessoas. Com bairros inteiros transferidos para espaços temporários, a preocupação é controlar crimes e conflitos nesses locais.
Na Ulbra, em Canoas, por exemplo, onde são atendidas ao menos 6 mil pessoas, foi montado posto policial, com cerca de 60 policiais, civis e militares. Outros pontos na Capital também contam com policiamento fixo no local. Nos demais, o esquema adotado é o de rondas para conferir a situação e orientar voluntários. Em Porto Alegre, a prefeitura decidiu contratar segurança privada para atuar nos locais.
Manter a segurança de crianças e mulheres abrigadas é uma das demandas que tem mobilizado instituições. Desde o início das cheias, ao menos cinco casos de estupro em abrigos foram registrados na Região Metropolitana. As vítimas são quatro crianças com idades entre seis e 10 anos e uma jovem – seis suspeitos foram presos. Em cinco casos, os autores eram familiares. Uma das apostas é a criação de espaços exclusivos para abrigar esses grupos vulneráveis.
Efetivo e equipamentos
A médio e longo prazos, uma das questões que deve ser enfrentada pela segurança pública é o efetivo policial. O governo decidiu suspender férias dos servidores e autorizou que policiais trabalhem em horas extras durante a operação montada. A mobilização para os resgates e atendimento à população ilhada levou à decisão de empregar praticamente todo o efetivo nas ruas. Somente na BM, cerca de 500 servidores também foram atingidos pelas enxurradas de forma direta – a maioria seguiu trabalhando da mesma forma.
Estados como Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo enviaram reforços. A Força Nacional encaminhou 117 bombeiros e mais cem policiais militares – outros 300 foram solicitados. Em paralelo o governo do Estado abriu edital para chamar 1 mil PMs da reserva para fazer o policiamento nos abrigos e deve chamar 260 policiais civis aposentados. Os policiais militares começam a atuar nos abrigos a partir desta segunda-feira (13). A necessidade de investir em embarcações, aeronaves e treinamentos também é apontada.
— Haverá aumento da miséria, do desemprego. Onde era pobre, vai ficar mais pobre. Muito mais vulnerável. Os grupos criminosos tendem a se aproveitar. Quando todo esse reforço, lá adiante, for embora, a gente vai ter outro Rio Grande do Sul. E as forças de segurança seguirão aqui. Isso requer um remodelamento, dos treinamentos e dos equipamentos. Talvez a BM tenha que aprender a andar muito mais de barco do que anda a cavalo, por exemplo — avalia Alberto Kopittke.
Desaparecidos
Um dos trabalhos realizados pelas polícias desde o início dos salvamentos é o auxílio na localização de familiares desaparecidos. Até a manhã deste domingo, 125 pessoas eram consideradas desaparecidas no Estado. Pela Polícia Civil, houve reforço na equipe da Delegacia de Investigação de Pessoas Desaparecidas (DPID). A delegacia agora conta com quatro equipes – cada uma coordenada por um delegado. O intuito é agilizar a localização de pessoas que tenham desaparecido durante as inundações. O telefone para contato é o 08006420121.
— Ao invés de ter uma DPID, vamos ter temporariamente quatro. Não temos casos de desaparecido que não esteja sendo investigado. Alguns desaparecimentos não foram registrados, não deu tempo, e já foram encontrados. No momento da tragédia, muitas pessoas foram resgatadas em barcos diferentes, mas estamos conseguindo encontrar. Estamos encontrando e unindo as famílias — afirma o diretor do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), Mario Souza.
O Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis da Polícia Civil também vem auxiliando na busca por crianças e adolescentes.
— Na quinta-feira (9) localizamos 13 crianças que estavam separadas das famílias. Estavam abrigadas, mas cada uma em um lugar — explica o chefe da Polícia Civil, Fernando Sodré.
A Defesa Civil do Estado orienta as pessoas que verifiquem se seus nomes constam na lista de desaparecidos. Se estiverem, é necessário procurar a delegacia de Polícia Civil mais próxima.
Fake News
Um dos pontos que ainda preocupa as autoridades é a disseminação de notícias falsas. Desde os primeiros dias de resgates, foram divulgadas inúmeras fake news, especialmente pela internet. Em diversos casos, os policiais precisaram ser deslocados para atender as supostas ocorrências, que depois eram detectadas como falsas.
— Nesta semana, recebemos a informação de que teriam explodido em um banco em Canoas, na Mathias Velho. Deslocamos o efetivo de helicóptero e embarcado o mais rápido possível. Chegando lá, nada havia acontecido. Isso vai nos desfocando a energia, que deveria ser usada para o que realmente interessa que é a segurança das pessoas — afirma o comandante-geral da BM, Cláudio Feoli.
Na sexta-feira, a Brigada Militar fez nova postagem alertando para mais uma informação falsa. “Não acredite em fake news, não houve roubo de fardamento da Brigada Militar”, alerta o card. Após o arrombamento de uma loja de artigos militares na Capital, essa informação falsa passou a ser espalhada.
A Secretaria da Segurança Pública (SSP) chegou a divulgar alerta contra a disseminação desse tipo de notícia falsa. Os casos estão sendo investigados pela Polícia Civil. Os abrigos também vêm sendo alvos recorrentes de notícias falsas.
— É muito importante não passar a sensação de problema generalizado nos abrigos. Isso é criado por redes sociais, e potencializa de uma forma que é irreal — ressalta Sodré.