Portaria do Ministério da Justiça prevê 16 situações nas quais a filmagem da ocorrência policial é obrigatória, mas abre margem para cada estado definir qual modelo adotar
A portaria, assinada pelo ministro Ricardo Lewandowski, prevê 16 situações nas quais a filmagem da ocorrência policial é obrigatória, mas abre margem para cada estado definir qual modelo adotar, se o de gravação automática e ininterrupta, ou o que permite ao próprio agente de segurança desligá-la.
A portaria tem caráter de orientação, ou seja, não precisa ser seguida pelos governos estaduais. Mas, segundo Lewandowski, os estados que usarem recursos dos fundos Nacional de Segurança Pública e Penitenciário Nacional para adquirir os equipamentos terão que adotar as diretrizes da pasta.
Para Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, trata-se da grande vantagem da portaria para influenciar os estados na adoção das orientações. Estados menos populosos, de orçamentos menores, costumam depender mais dos recursos dos fundos nacionais para suas políticas de segurança.
— É um incentivo importante para que estados adotem o programa de câmeras. Ajuda a induzir uma política nacional — diz Carolina.
A pesquisadora, no entanto, é cética em relação à capacidade do programa, por si só, mudar o panorama da atividade policial no país, que convive tanto com a alta taxa de agentes mortos em serviço quanto pela letalidade policial.
— A câmera sozinha não faz nada. Se não tem vontade política e decisão do gestor, do governador e do comandante-geral da polícia, não vai funcionar.
As diretrizes divulgadas pelo governo Lula vêm dias após o governo de São Paulo publicar um edital para a contratação de 12 mil novas câmeras corporais para a PM — um aumento de 17% em relação à quantidade hoje em uso na corporação.
Mas o documento se tornou alvo de críticas ao prever câmeras com acionamento voluntário do policial, modelo questionado por especialistas, entre outros problemas. Atualmente, os aparelhos acoplados nas fardas gravam sem interrupção e não podem ser desligadas pelo policial, sendo acionadas automaticamente quando retiradas da recarga da bateria.
A medida hoje em vigor inibe que maus profissionais cometam irregularidades durante o expediente e pode se tornar uma prova a favor do próprio agente, em caso de conduta correta.
Estudos mostram que policiais costumam desobedecer a obrigação de acionar as câmeras em ocorrências se tiverem a escolha de ligar ou não os equipamentos. Um experimento da universidade americana Stanford, feito com 470 policiais militares do Rio de Janeiro que atuavam na Rocinha entre 2015 e 2016, aponta que em sete de cada dez ocorrências os policiais desobedeceram o protocolo da câmera corporal exigindo que registrassem os eventos.
O governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas (Republicanos), afirmou que as diretrizes do Ministério da Justiça para o uso de câmeras corporais nas polícias, publicadas nesta terça-feira, não se chocam com a nova proposta que ele pretende implementar no estado sobre o tema.
Daniel Edler, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, discorda do governador. Para ele, as diretrizes do governo Lula são mais próximas dos protocolos originais do Programa Olho Vivo lançado no governo João Doria em 2020 do que do edital de Tarcísio.
— A portaria do governo federal vai além do edital paulista ao orientar para a gravação em todo o momento que houver patrulhamento — afirma Edler.
O pesquisador se refere à obrigação de uso da câmera se limitar a ocorrências policiais no edital paulista. No documento federal consta um item recomendando o uso da câmera “no patrulhamento preventivo e ostensivo ou na execução de diligências de rotina em que ocorram ou possam ocorrer prisões, atos de violência, lesões corporais ou mortes”. Para Edler, esse trecho amplia a necessidade do registro em vídeo na atividade da PM para além do previsto em São Paulo.
Edler também questiona a lógica de se criar um protocolo dando brecha para a iniciativa do policial na hora de registrar alguma ação.
— As câmeras só são necessárias porque se constatou que os policiais não cumprem as orientações para o uso da força em suas atividades. Colocar um novo protocolo obrigando o policial a cumprir um velho protocolo não faz sentido, é andar em círculos — diz ele.
Na noite desta terça-feira, o Instituto Sou da Paz publicou uma nota elogiando avanços na normativa federal, mas afirmando que ela “não soluciona pontos críticos”, como a controvérsia a respeito das gravações das câmeras corporais, “pois não é taxativa”.
Por Guilherme Caetano— O Globo São Paulo