DECISÃO DO STF
O Tribunal, por unanimidade, apreciando o tema 703 da repercussão geral, acolheu a pretensão principal, restando prejudicado o pedido recursal subsidiário, e deu provimento ao recurso para determinar que os autos retornem à primeira instância, a fim de que sejam examinados os demais fundamentos deduzidos na petição de habeas corpus. Foi fixada a seguinte tese: “O art. 47 da Lei nº 6.880/80 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, sendo válidos, por conseguinte, os incisos IV e V do art. 24 do Decreto nº 4.346/02, os quais não ofendem o princípio da reserva legal”. Tudo nos termos do voto do Relator. Plenário, Sessão Virtual de 9.8.2024 a 16.8.2024.
Entenda o caso
Militar do exército, na iminência de ser preso por infração disciplinar, interpôs habeas corpus alegando a inconstitucionalidade do RDE, visto entender que as transgressões disciplinares devem ser definidas pelo legislativo e não pelo executivo, bem como ausência de possibilidade de decreto prever a pena restritiva de liberdade.
Julgando o caso a Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região deu provimento parcial à remessa oficial, para confirmar a não recepção do art. 47 da Lei nº 6.880/80 pela Carta de 1988, por conflitar com a norma insculpida no inciso LXI de seu art. 5º, e, por conseguinte, para declarar a invalidade das disposições atinentes às penas de prisão e de detenção constantes no Decreto nº 4.346/02 (incisos IV e V do art. 24).
O artigo 47 da Lei n.º 6.880/80 delegou aos regulamentos disciplinares das Forças Armadas o exercício do poder regulamentar acerca da amplitude das transgressões disciplinares e aplicação de suas penas.
A União, irresignada com a decisão do TRF-4, acionou o STF aduzindo que o Estatuto dos Militares está em perfeita harmonia com a Constituição vigente.
Na sequência, o STF decidiu que não há incompatibilidade entre o artigo 47 da Lei n.º 6.880/80 com a Constituição Federal/88, porquanto dita norma “se limita a prescrever que a especificação das transgressões militares, sua classificação, a amplitude e a aplicação das respectivas penalidades ocorrerão por meio de regulamentos disciplinares”, e, por conseguinte, declarou que os incisos IV e V do art. 24 do Decreto nº 4.346/02, que preveem as penas disciplinares restritivas de liberdade, não ofendem o princípio da reserva legal.
Reflexão
De notar-se que a tese da inconstitucionalidade dos regulamentos disciplinares instituídos por decreto não é nova. Recapitulando, (1) a Procuradoria da República em 2005 ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3340, alegando a inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército, tendo, entretanto, em julgamento realizado em 3/11/05, a Suprema Corte não conhecido do pedido.
(2) O egrégio Superior Tribunal de Justiça também foi instado a se manifestar acerca de tal tese, oportunidade sufragada nos autos do Mandado de Segurança n.º 9.710 – DF, julgado em 25/8/2004, cujo acórdão, da lavra da Ministra Laurita Vaz, assentou que a punição administrativa por transgressões disciplinares, com o fim de preservar a hierarquia e a disciplina nas Forças Armadas, prevista no Estatuto dos Militares, regulamentada pelo Decreto n.º 4.346/2002, não ofende à Constituição Federal ou à lei, porquanto a medida constritiva, do ponto de vista formal, está em consonância com o ordenamento jurídico pátrio.
(3) Nesse mesmo sentido, o Tribunal de Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul há muito firmou entendimento acerca da constitucionalidade do Regulamento Disciplinar da Brigada Militar e, ainda, da pena disciplinar de detenção, nos autos do Agravo de Instrumento n.º 117/06, cujo relator foi o Des. Geraldo Anastácio Brandeburski, julgado em 2 de maio de 2007.
(4) Mais recentemente, a matéria foi regulamentada por intermédio da Lei Federal n.º 13967/19, a qual afastou a possibilidade de sanção disciplinar militar restritiva de liberdade. Contudo, dita lei foi declarada inconstitucional pelo STF, no julgamento das ADIs n.ºs 6.595/DF e 6.663/DF, afastando a ilegalidade da referida sanção disciplinar.
(5) Agora, no presente caso, a Suprema Corte põe fim à discussão, enfatizando que o “exercício do poder regulamentar da administração” não só pode como deve acontecer por meio de decreto, pois as transgressões militares decorrem do exercício do poder disciplinar da Administração Militar, consequentemente a “lei não precisa ser taxativa ao descrever as condutas proscritas, podendo deixar a cargo de atos infra legais a estipulação das minúcias segundo as peculiaridades dos serviços, as quais, muitas vezes, não poderiam sequer ser cogitadas pelo legislador”.
Nesse sentido, o STF destaca que existem distintos regulamentos disciplinares para as distintas corporações, a saber: as Forças Armadas (que são integradas pelas forças do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, cada qual, como visto, com seu regulamento próprio), as polícias militares dos estados e do Distrito Federal e os corpos de bombeiros militares dos estados e do Distrito Federal. Essas corporações deverão ter seus próprios regulamentos disciplinares, redigidos e adaptados às condições especiais e à realidade peculiar de cada uma delas. Gizou-se que, para o adequado funcionamento das organizações castrenses, a Administração Militar precisa impor obrigações e deveres aos militares a ela vinculados sem a necessidade da pormenorizada estipulação deles em lei formal, sendo o exercício do poder disciplinar matéria sujeita apenas ao princípio da reserva legal relativa.
Assim sendo, após vastos debates acerca da inconstitucionalidade dos regulamentos disciplinares instituídos por decreto e das penas disciplinares restritivas de liberdade previstas nos Regulamentos, o Supremo Tribunal Federal fixa o entendimento que os Regulamentos Disciplinares Militares ao regulamentarem as infrações/sanções disciplinares não extrapolam o legítimo poder de regulamentar do chefe do Executivo, porquanto não se trata de produção legiferante, mas sim explicitação e regulamentação de sanções já albergadas por lei.