Quando uma abordagem policial pode ser considerada ilegal 

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Tribunais de Justiça entendem que é preciso haver um fato objetivo que deixe a pessoa sob suspeita

GABRIEL JACOBSEN E LUCAS ABATI GZH

Em 2022, turma do STJ considerou ilegal a busca pessoal ou veicular justificada por “atitude suspeita”, mesmo em casos de flagrante Marcello Casal Jr / Agencia Brasil

São José do Norte, sul do Rio Grande do Sul, março de 2022. Um Astra com quatro pessoas é abordado por policiais militares na RS-101. O motorista foge e a perseguição se estende por dois quilômetros, até os policiais conseguirem interceptar o veículo. Com o grupo, os policiais encontram cocaína, maconha e ecstasy e os quatro acabam presos em flagrante por tráfico de drogas.

Apesar das apreensões, a ação policial foi considerada ilegal pela Justiça, que liberou o grupo e pediu que a corregedoria investigasse os agentes envolvidos. O motivo: a abordagem policial ocorreu sem justificativa, de forma aleatória.

“A fundada suspeita deve ser justificada por alguma circunstância concreta que se faça presente antes da abordagem (…). O simples fato de a abordagem ter sido exitosa em encontrar drogas (…) não permite a conclusão de que a ação foi lícita”, cita trecho da decisão a qual GZH teve acesso.

O entendimento consolidado em tribunais de Justiça é de que qualquer cidadão, independentemente de classe social, cor ou credo, só pode ser abordado pela polícia se houver algum fato objetivo que lhe deixe sob suspeita. A decisão leva em conta tanto o Código Penal, que prevê que a busca só pode ser realizada com “fundada suspeita”, quanto a Constituição Federal, que garante o direito de todos à privacidade e intimidade.

— O motivo da abordagem tem de vir descrito, tem de ser explicado. Senão, é uma abordagem seletiva — explica o desembargador Sérgio Blattes, da 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, que acrescenta:

Quando eu admito que façam esse tipo de abordagem (injustificada) num veículo ou alguém que está na rua, eu estou admitindo que possam fazer comigo.

SÉRGIO BLATTES

Desembargador

— Quando eu admito que façam esse tipo de abordagem (injustificada) num veículo ou alguém que está na rua, eu estou admitindo que possam fazer comigo. A diferença é que, para fazer comigo, é mais caro: eu sou branco, tenho curso superior, sou desembargador — acrescenta Blattes.

No ano passado, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou ilegal a busca pessoal ou veicular justificada por “atitude suspeita”, mesmo em casos de flagrante. Em decisão sobre o tema, o ministro Rogério Schietti Cruz escreveu que a medida é necessária, entre outros motivos, para “evitar a repetição de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade”.

O entendimento das cortes superiores divide opiniões, principalmente entre integrantes da segurança pública. O promotor Marcos Centeno, titular da Promotoria de Controle Externo da Atividade Policial, discorda dessa interpretação. 

— A lei processual é muito clara. Está em flagrante delito quem é apanhado cometendo o crime ou logo após cometer, e ponto. A lei não exige circunstâncias anteriores. Mas, eu não posso ignorar o entendimento jurisprudencial majoritário que tem questionando a conduta policial pré-prisão — destaca o promotor. 

Ainda que discorde, Centeno reforça que há um entendimento jurídico já consolidado, e que as polícias precisam respeitá-lo. Por este motivo, emitiu uma recomendação aos batalhões de Polícia Militar de Porto Alegre.

— A orientação é que o policial traduza no processo o que é atitude suspeita, principalmente para o julgador. Atitude suspeita, para mim, é uma coisa, para outra pessoa pode ser outra coisa. A fase de concordar (com o STJ) já passou. Agora, temos de adequar o nosso serviço — sugere o promotor.

Abordagem aleatória também é ineficiente, diz ministro do STJ

Conforme relatório produzido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), as características ser negro, jovem e tatuado são as três mais percebidas como suspeitas e que justificam abordagens policiais, segundo pesquisa com policiais que atuam de seis territórios da Região Metropolitana.

O defensor público Andrey Régis de Melo ressalta que o cidadão pode questionar o motivo de ser interpelado pela polícia. Em caso de uma abordagem violar o seu direito, ele pode buscar a Justiça, até mesmo por meio da Defensoria Pública.

— A abordagem policial é um ato administrativo que está sujeito ao controle judicial, que está sujeito ao escrutínio da sua legalidade. Se não for configurada a fundada suspeita e sendo abordada uma pessoa negra, é muito provável que vamos chegar a um caso de perfilamento racial que nada mais é do que o racismo institucional. O cidadão tem direito de perguntar, seja para o policial ou depois judicialmente por que foi abordado —  afirmou Melo, que dirige o Núcleo de Igualdade Racial da Defensoria Pública do RS.

Durante o debate sobre abordagens policiais injustificadas, o ministro do STJ Rogério Schietti Cruz destacou que esse tipo de procedimento, além de reproduzir preconceitos, é ineficiente para combater o crime. Conforme o voto do ministro, dados oferecidos à época por secretarias estaduais da Segurança Pública revelavam que as abordagens policiais no país tinham eficiência de 1%, isto é, a cada cem pessoas interpeladas, uma era autuada por alguma ilegalidade.

Em 2013, a Justiça Federal dos Estados Unidos também mudou de entendimento sobre abordagens policiais em Nova York. Ao entender que elas ocorriam com base em critérios discriminatórios, foram limitadas as situações em que o procedimento pode ser adotado.

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