Durante os mês de maio, 77 mil salvamentos foram realizados no Estado. Policiais e bombeiros precisaram atuar de forma embarcada, tanto nos resgates como na prevenção à criminalidade
LETICIA MENDE GZH
Em setembro de 2020, o gaúcho Sandro Caron assumiu a Secretaria de Segurança do Ceará. O Estado amargava uma disparada dos homicídios, após motim de policiais militares no início do ano e domínio de facções. O delegado da Polícia Federal, que atuou na coordenação da segurança da Copa do Mundo de 2014 e coordenou o serviço antiterrorismo nos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016, estava diante de um dos maiores desafios da carreira. Após se tornar, em janeiro do ano passado, secretário da Segurança Pública do RS, passou a replicar aqui parte da experiência na redução dos assassinatos alcançada no Nordeste.
Os homicídios vêm apresentando redução no Rio Grande do Sul, mas, no último mês, diante da maior crise climática do Estado, as forças de segurança, assim como outras áreas, foram obrigadas a se readaptarem. Viaturas precisaram ser substituídas por embarcações e servidores tiveram que se desdobrar trabalhando sete dias por semana. Estruturas tiveram de ser abandonadas pelos efetivos. Entre elas, a própria sede da SSP, no bairro Navegantes, na zona norte da Capital, onde a água tomou o térreo, causando destruição.
Nesta semana, um dia após regressar ao prédio, Caron recebeu GZH para abordar o atual momento vivido pela segurança no RS.
Em maio, o RS registrou 78 homicídios, que é o menor número num mês na série histórica. Como se chegou a esse resultado?
O RS vem numa queda permanente de indicadores. Nós tivemos em 2023 o ano mais seguro de toda a série histórica. E os indicadores dos cinco primeiros meses já são menores do que qualquer outro ano na série histórica. Quando assumi a secretaria, ouvi de muitas pessoas que os números tinham chegado num platô, que não iam mais baixar. Sempre temos que buscar estratégias. Tem uma expressão que uso que é “dedo no pulso”. Tem que estar sempre controlando. O dia começa às 6h30min quando recebemos um relatório do dia anterior. Depois, às 14h temos atualização, e às 18h outra. A gente olha a tendência do dia, do anterior e do mês. A medida para conter eventual aumento não é tomada no fim do mês, e sim no mesmo dia ou de um dia para o outro. A gente vê pessoas dizendo “acho que o crime no RS vai aumentar depois das enchentes”. Não temos direito de trabalhar com achismo. Temos que trabalhar com o concreto: estatísticas, indicadores, dados de inteligência e de investigação. O resto é especulação.
Maio foi um mês totalmente atípico. Isso também impactou nos indicadores?
Credito o resultado dos indicadores, que foram os mais baixos da história, a dois fatores: o primeiro foi toda a ostensividade das forças de segurança. Trabalhamos com o maior efetivo que a polícia já colocou nas ruas nesse Estado. Durante o mês de maio, os nossos profissionais trabalharam sete dias por semana. Suspendemos férias, o governo autorizou o chamamento de brigadianos da reserva e policiais civis aposentados pelo programa Mais Efetivo, para aturarem nos abrigos. Hoje a Força Nacional tem 267 profissionais no RS. Bombeiros e policiais foram enviados diretamente por outros Estados do Brasil. Temos 521 hoje aqui. A Polícia Federal deu apoio grande e a Polícia Rodoviária Federal. O pessoal da área administrativa todo foi para a rua. Nós tivemos que nos adaptar. Em várias áreas não se podia mais usar viatura, só embarcação. O segundo fator, obviamente a gente sabe, que, assim como as enchentes impactaram cidadãos de bem, em algumas áreas que foram inundadas tínhamos pessoas com ligação com crime, que também foram impactadas.
Havia um receio de que o RS vivesse uma disparada da criminalidade em razão das inundações. Como o senhor avalia isso?
A maioria dos casos de saques aconteceu nos três primeiros dias, em que a gente tinha que fazer uma escolha: ou salvar a vida das pessoas ou patrulhar em áreas alagadas para evitar furtos. Obviamente, salvamos as pessoas. Foram 77 mil salvamentos. Do quarto dia em diante, bombeiros, voluntários, Defesa Civil e Exército seguiram nos resgates, e a gente direcionou as polícias. Tivemos uma queda grande de notícias de furtos, e se conseguiu investigar, e prendemos nove pessoas pelos saques em Eldorado. Vi algumas menções durante esse período que o crime ia se fortalecer e os indicadores aumentar. É claro que se o Estado não fizer nada, depois de uma calamidade como essa, vai ter problema de segurança pública. Essas afirmações eram feitas levando em conta que o Estado nada faria. Durante esse período, a ordem foi tolerância zero. Prender todo mundo que se aproveitasse do momento para praticar crimes. A gente segue nesse ritmo. Só em crimes relacionados às enchentes, já prendemos 234. A Polícia Civil durante todo maio atuou muito no policiamento, auxiliando a Brigada. Essa semana entrou num modo em que a BM segue com muita força nas ruas, com apoio das PMs de outros Estados, mas a PC já voltou às suas atividades normais.
A maioria dos casos de saques aconteceu nos três primeiros dias, em que a gente tinha que fazer uma escolha: ou salvar a vida das pessoas ou patrulhar em áreas alagadas para evitar furtos. Obviamente, salvamos as pessoas. Foram 77 mil salvamentos.
Quanto tempo esses reforços devem permanecer aqui? O que se prevê para a manutenção da segurança depois que eles deixaram o Estado?
A gente toda a semana avalia a necessidade de continuidade deles. Esses Estados não colocaram um ponto final para tirar as tropas daqui. Calculo que daqui para a frente pelo menos mais 60 dias vai ser importante manter esse reforço. A ideia é tentar coincidir a saída dessas equipes com o ingresso de mais 400 policiais da Brigada.
As estruturas das forças de segurança também foram atingidas. O quanto isso impactou?
Quando começou a subir a água, além dos salvamento e da segurança, tivemos que mapear todas as estruturas que seriam, em tese, atingidas. Levantar móveis, retirar computadores, viaturas. Para não perder tantos bens. Principalmente, viaturas, armamentos, foram levadas para local seguro. Chegamos num momento em que tivemos que sair do prédio da secretaria, do prédio do Comando-Geral, a perícia teve que sair, o Detran teve que sair, mas nunca baixamos o ritmo das ações operacionais. Transferimos todos os comandos para o sistema de controle de incidentes, que foi montado na Academia da Polícia Militar. Foi o maior desafio de todos que estão hoje na segurança pública. Mas a segurança pública vem mais forte, mais resiliente.
Outra frente que ainda demanda energia das polícias são as fake news. O quanto essas informações falsas prejudicaram o trabalho das forças de segurança?
Tivemos um problema muito grave de fake news. A Polícia Civil instaurou mais de 50 inquéritos, envolvendo fraudes e fake news. Tirou mais de 70 perfis do ar, de rede social. Ninguém está preocupado se o cidadão está criticando ou enaltecendo as ações do Estado na internet. Nós focamos é nas fake news que tinham potencial de criar um problema operacional gravíssimo. Durante aquele período em que os voluntários estavam ajudando e muito, soltaram uma fake news dizendo que a Brigada estava apreendendo toda embarcação voluntário. Essa notícia tinha objetivo muito claro de inibir os voluntários a ir. Então, é uma questão criminosa. Outra fake news, que também instauramos inquérito, que tinha ocorrido o roubo de mil fardas da Brigada. E aí soltaram vídeos dizendo que se chegassem homens fardados era para ter cuidado porque poderiam ser bandidos. Quem solta uma notícia dessa tem objetivo de criar uma situação de um cidadão daqui a pouco confundir um policial com um criminoso e levar a uma tragédia.
Os servidores também foram bastante atingidos, inclusive em suas vidas privadas. Que tipo de assistência o Estado está prestando ou planejando?
Temos uma prévia de mil afetados. Desses, 30% a 40% perderam tudo. E, mesmo com a vida deles afetada, nenhum momento deixaram de atuar. O Estado vem avaliando o que pode ser feito em relação aos servidores em geral. Isso ainda está sendo discutido com as áreas econômicas. O que a gente vem fazendo, vem procurando cadastrar todos os impactados, até para ter uma ideia de quem perdeu tudo, para que essa ajuda seja proporcional ao dano que cada um teve. Os próprios comandos vêm fazendo campanhas de donativos, junto a entidades empresariais. O Conselho Nacional de Comandantes Gerais das PMs do Brasil organizou um Pix para que integrantes de PMs do Brasil inteiro mandem doações. Esse recurso virá para a Fundação da Brigada Militar, para que se consiga auxiliar, por exemplo, comprar geladeira, comprar fogão. Há muitas mobilizações. A PM de São Paulo, por exemplo, trouxe dois caminhões de doações para os policiais militares.
É seguir baixando esses indicadores, e não deixar que eventualmente alguma área do Estado em que haja impacto na economia isso se reverta em aumento da criminalidade. Essa diretriz de tolerância zero contra o crime segue daqui para a frente. Não é só no período das enchentes.
Existem muitos desafios, especialmente na economia do Estado, num cenário que pode impactar na segurança. Como vocês estão se preparando?
Só vai ter impacto se o Estado não tomar as medidas adequadas para impedir que isso ocorra. O nosso planejamento a gente procura estar dois, três passos na frente. E obviamente a gente vem interagindo semanalmente com as áreas econômicas do Estado. A gente tem que ter uma ideia do que vai acontecer em nível de economia. Se pode ter algum nível de aumento de desemprego. Se eventualmente pode ter impacto em alguma cidade, já vem com as medidas de segurança pública. Ou seja, a gente não vai esperar acontecer o problema para sanar. Tudo isso que vai acontecer daqui para a frente está sendo acompanhado. Vamos fazer tudo que for preciso e vamos garantir que não haja aumento na criminalidade do Estado. Que não haja aumento dos indicadores criminais e nem fortalecimento do crime organizado. A gente sabe que podem vir impactos daqui para a frente, por isso não vamos baixar a guarda. É seguir baixando esses indicadores, e não deixar que eventualmente alguma área do Estado em que haja impacto na economia isso se reverta em aumento da criminalidade. Essa diretriz de tolerância zero contra o crime segue daqui para a frente. Não é só no período das enchentes.
Que lição a segurança tira disso tudo? O que é preciso ajustar, aprimorar ou mesmo adquirir em termos de equipamentos?
Durante os períodos dos resgates e do patrulhamento embarcado, pessoas da iniciativa privada ajudaram doando embarcações e equipamentos. Muita coisa tivemos que comprar no auge da crise. Agora vamos fazer um mapeamento. Estamos em fase de implantação de uma infraestrutura de radiocomunicação. Em toda calamidade desse tipo, quando tem uma interrupção de sinal de telefone, gera falta de comunicação. No ano passado, a Brigada concluiu uma licitação, as torres estão em fase de instalação, e até o meio do ano que vem vamos estar com toda a infraestrutura montada e funcionando. A gente está vendo agora claro a parte de embarcações. Tínhamos uma ideia da quantidade e vamos ter que rever. Vamos ter que pensar o que vai ter que ser inserido daqui para a frente na formação dos nossos policiais. Colocar uma formação maior na Brigada em ações de Defesa Civil. Muitas coisas terão que ser revistas. Não podemos passar por tudo isso e não evoluir enquanto instituições. Tem que fazer aquisições, treinamentos. Vamos capacitar um número maior de policiais para operações embarcadas. O ideal é que tu estejas pronto para o pior cenário possível e que nada de ruim aconteça.