Retornamos ao tema: Abordagens policiais.
Há abordagens policiais que se iniciam com um gesto simples e técnico: a verificação da habilitação, do licenciamento do veículo e de outros documentos pertinentes. Atos corriqueiros, inseridos no exercício da fiscalização administrativa de trânsito, amparados em normas claras e na própria Constituição. No entanto, não são incomuns as situações em que, a partir dessa atuação legítima, surjam elementos que exijam pronta intervenção diante de indícios de infração penal. Em que ponto a atividade administrativa cede lugar à atuação fundada em suspeita? No cotidiano da polícia ostensiva, marcada pela imprevisibilidade e pelo dever de pronta intervenção, essa transição impõe reflexões que não podem ser ignoradas.
A Constituição Federal estabelece que cabem às Polícias Militares a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (art. 144, § 5º). O Código de Trânsito Brasileiro, por sua vez, confere às PMs, em seu art. 23, III, a incumbência da fiscalização de trânsito, quando e conforme convênio firmado, como agente do órgão ou entidade executivos de trânsito ou executivos rodoviários, concomitantemente com os demais agentes credenciados. Isso significa que a abordagem de veículos, por exemplo: para verificação de CNH, licenciamento e demais documentos, ou os equipamentos obrigatórios (por convênios) é, por si, legal? Ou seria necessário algum tipo de reforço normativo, uma “caracterização” mais precisa da missão?
O entendimento doutrinário e jurisprudencial a respeito da atuação da Polícia Militar no trânsito não é uniforme. Há quem sustente que a simples fiscalização, ainda que não precedida por sinais de irregularidade, constitui ato plenamente legítimo, dentro da atribuição administrativa prevista no CTB, v.g. AgRg no HC nº 961.098 e AgRg no HC nº 898279 (STJ). Outros posicionamentos, contudo, apontam para a necessidade de que o policial esteja formalmente vinculado a uma operação de fiscalização viária, com identificação visual específica, como colete ou sinalização própria, a exemplo do REsp 789117 (STJ). O Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito (CONTRAN, 2022), por sua vez, estabelece parâmetros de identificação para os agentes que exercem essa atribuição. Mas, será mesmo razoável condicionar a legalidade da ação a elementos meramente formais? Ou estaríamos diante de critérios voltados mais à padronização administrativa do que à validade jurídica da abordagem?
No curso dessas intervenções, surgem situações que testam, na prática, os limites entre a legalidade e a urgência. A visualização de uma arma exposta, o odor inequívoco de entorpecente ou sinais objetivos que, associados, revelem fundada suspeita — tudo isso pode levar a uma atuação que extrapola a esfera administrativa. O art. 244 do Código de Processo Penal exige fundada suspeita para autorizar a busca pessoal. Mas como se forma essa suspeita? Ela precisa existir antes mesmo do contato com o cidadão ou pode, legitimamente, emergir durante a abordagem, a partir de percepções concretas do agente? E como deve proceder o policial quando o tempo de decisão se resume a segundos?
É nesse cenário que se insere o debate sobre o encontro fortuito de provas. A atuação da Polícia Militar, no exercício da polícia ostensiva, está voltada prioritariamente à prevenção e à preservação da ordem pública. Não se trata, nesse contexto, de atividade típica de polícia judiciária — embora, nos termos da legislação aplicável, especialmente nos crimes militares, também lhe caiba atribuição investigativa. Mas o que fazer quando, no exercício diuturno de polícia ostensiva, o policial se depara com evidências inequívocas de um crime em flagrante? Estaria ele autorizado a prosseguir, ainda que ciente de que, futuramente, sua conduta poderá ser analisada sob a ótica da ilicitude da prova? Ou caberia ao agente “ajustar”, a posteriori, os motivos da abordagem, temendo que a narrativa oficial se torne o único anteparo à sua atuação, para evitar que o preso seja posto em liberdade imediatamente?
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RHC 239.805/PE, assentou que o encontro fortuito de elementos probatórios, quando decorrente de diligência legítima e regular, não enseja nulidade, desde que ausente desvio de finalidade. O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, tem reconhecido a validade de provas obtidas em situações em que o agente público, no exercício de atividade legalmente prevista, depara-se inesperadamente com indícios de infração penal — como se observou no AgRg no RHC 190.549/BA. Essas decisões, embora relevantes, suscitam ponderações: em que medida oferecem segurança jurídica efetiva à atuação do policial militar em abordagens rotineiras? A serendipidade, compreendida como fenômeno probatório incidental, consolida-se como baliza de legalidade ou ainda representa um ponto de tensão hermenêutica na aplicação das garantias processuais penais?
Esse dilema se torna ainda mais sensível quando se pensa na multiplicidade de missões atribuídas à Polícia Militar. Em ações de trânsito, bloqueios viários ou patrulhamento preventivo, o policial exerce funções diversas, muitas vezes no mesmo turno. Mas deve ele, a cada nova situação, portar sinalizações específicas para que sua atuação seja considerada válida? E se, no meio de uma fiscalização de trânsito, for encontrado um carregamento ilícito? Haveria nulidade apenas porque a missão original estava vinculada à fiscalização veicular?
O Decreto nº 88.777/83 define o policiamento ostensivo como aquele em que o agente é visivelmente identificado, seja pela farda, pelo equipamento ou pela viatura. Mas isso basta para garantir a legitimidade da ação? Ou seria necessário vincular sua validade à existência de protocolos operacionais específicos, como o uso de coletes refletivos, sinalizações ou a denominação formal da missão?
Essas perguntas não são retóricas. São questões que emergem, diariamente, na atuação daqueles que ocupam a linha de frente da segurança pública. O policial militar é chamado a agir com firmeza, legalidade e discernimento. Mas que garantias jurídicas lhe são oferecidas quando o inesperado surge em meio à rotina? Que critérios definem a regularidade da sua conduta quando ele age no exercício típico da atividade de policiamento ostensivo, mas em legítima resposta ao flagrante?
A construção de uma segurança pública eficaz e comprometida com o Estado de Direito passa, necessariamente, pelo reconhecimento da complexidade que envolve o agir policial. A legalidade deve ser o eixo da atuação estatal, mas não pode ser interpretada de modo dissociado da realidade. O encontro fortuito de provas, quando decorrente de ação legítima, não deveria ser tratado como exceção tolerada, mas como consequência possível — e esperada — da presença do Estado onde ele precisa estar.
Será que temos, de fato, compreendido o alcance e as implicações da atuação policial quando, a partir do exercício regular de sua atribuição, o agente se vê diante de um desdobramento que se apresenta sem aviso? Ou estamos construindo, pouco a pouco, um modelo de exigências incompatíveis com a dinâmica da atividade ostensiva? O militar que se vê diante do fato não anunciado, que age por convicção de dever e por fidelidade à missão, não deveria ser lançado à incerteza jurídica. O ordenamento lhe cobra responsabilidade — e é legítimo que assim o faça —, mas também precisa oferecer respaldo à altura da função que lhe confia. Talvez este seja o ponto de partida justo: reconhecer que a legalidade não se realiza apenas no papel, mas também na confiança que o Estado deposita naqueles que têm a missão de proteger a sociedade — evidentemente, com a necessária análise do caso concreto, à luz das circunstâncias específicas de cada abordagem.
Uma boa reflexão.
