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A LEI, A RUA E O EQUILÍBRIO NECESSÁRIO

Retornemos a temas muito caros para a sociedade e para a atividade de polícia ostensiva, ou seja: a denominada “saidinha” sem retorno, o uso de algemas e a abordagem policial. Para a compreensão devemos levar em conta a elevada carga criminal existente e que vitimiza diuturnamente nosso povo e, portanto, contribui para a sensação de insegurança em que vivemos.
Assim, importante destacar que nos corredores do poder, há um pensamento que permeia silenciosamente: “A Constituição não se curva ao ruído das ruas”. Essa máxima celebra a serenidade do Direito em meio às pressões da vida cotidiana, mas também revela um desafio intrínseco: tornar a norma jurídica aplicável à realidade dinâmica e imprevisível que pulsa fora dos gabinetes. É nesse dilema que decisões recentes colocam em evidência os limites da atuação policial em um Estado Democrático de Direito.


Imagine uma madrugada fria e chuvosa. Um policial militar patrulha um local de risco, deserto, quando percebe que o condutor de um veículo acelera ao avistar a viatura. Ele tem segundos para decidir: abordar ou não? Uma escolha errada pode custar vidas – inclusive a sua própria e a de seus colegas de guarnição. Mas, ao agir, ele sabe que sua decisão será dissecada em manchetes jornalísticas e tribunais, enquanto os riscos que enfrentou permanecerão invisíveis ao público.
Esse exemplo fictício traduz a complexidade do debate. Duas decisões recentes ilustram esse paradoxo: a primeira impede a prisão de ofício por descumprimento das condições impostas nas “saidinhas” de presos, determinando que apenas o juiz possa autorizar tal medida. A segunda conclui que a simples aceleração de um veículo ao avistar uma viatura não configura justa causa para abordagem. A essas decisões soma-se outra inquietação crescente: a restrição ao uso de algemas, frequentemente analisada sem a devida consideração dos riscos operacionais que envolvem a contenção de um indivíduo em situação de custódia estatal.
Ambas as decisões, embora juridicamente fundamentadas, suscitam uma questão essencial: como alinhar a preservação dos direitos individuais com a complexidade prática da segurança pública?


A realidade do policial que patrulha as ruas é diametralmente oposta à do magistrado que decide sob a luz fria dos códigos. A rua é um território de imprevisibilidade, um cenário onde um movimento suspeito pode ser um prenúncio de tragédia. O policial não dispõe de pareceres, de estudos prévios ou do conforto do tempo para agir. Ele precisa decidir no calor da ocorrência, onde um erro pode custar a própria vida ou a de terceiros.
Nesse cenário, o uso de algemas não é um mero detalhe operacional, mas uma salvaguarda essencial ao trabalho policial. Mais do que um protocolo técnico, é um recurso de contenção que protege todos os envolvidos e antecipa riscos que, muitas vezes, se manifestam em frações de segundo. Um deslocamento rotineiro pode se transformar em um momento de perigo iminente, onde fugas, agressões e atos de desespero não dão margem para hesitação. Quando isso acontece, não há segunda chance. As algemas, longe de um gesto de arbitrariedade, são a linha tênue entre o controle e o caos. Seu uso adequado, ao contrário de uma ótica abusiva, revela-se prudente.


No caso das “saidinhas”, a orientação reforça a importante separação entre os poderes. Apenas o juiz pode determinar a prisão de um condenado que viola suas condições de liberdade temporária. Essa decisão protege a ordem jurídica e os direitos do cidadão. Mas como deve agir o policial que, em flagrante, se depara com essa situação? Deveria ele apenas registrar e reportar ao Judiciário, permitindo que o tempo processual beneficie o infrator? Ou deveria agir prontamente, sob o risco de ter sua conduta revisada e questionada?


Na outra hipótese, a aceleração de um veículo diante de uma viatura policial é outro exemplo que ilustra esse dilema. Embora esse comportamento não constitua, por si só, evidência de crime, há circunstâncias em que pode indicar uma conduta suspeita, como a tentativa de fuga de uma ação criminosa. O policial, que tem segundos para avaliar o contexto e tomar uma decisão, não pode ser refém de interpretações estanques. Julgar sua conduta sem considerar a realidade da ocorrência é ignorar a essência do trabalho preventivo, que tantas vezes impede crimes antes que eles sequer aconteçam.
O mesmo vale para o uso das algemas. Há quem veja nelas um símbolo de excesso, quando, na verdade, são um freio para o imprevisível. Uma decisão que dura um segundo pode impedir uma tragédia ou abrir caminho para o descontrole. Quem já testemunhou um detido transformar um instante de aparente controle em um surto de violência sabe que a resistência não manda aviso. Nessa hora, o policial não tem o luxo da dúvida — ele precisa agir. E agir com segurança não é uma escolha, é uma necessidade.


A segurança pública, por sua própria natureza, exige que a lei e a prática coexistam em harmonia. O policial na ponta da linha não é um teórico. Ele não vive a abstração das normas, mas enfrenta a realidade concreta e dura de uma sociedade onde a insegurança se manifesta de forma visceral. Ao mesmo tempo, é inegável que uma sociedade democrática precisa repudiar qualquer forma de arbitrariedade. Essa tensão é o paradoxo da segurança pública: ela demanda tanto o rigor da norma quanto a flexibilidade da execução.


Para enfrentar esse paradoxo, é preciso mais do que interpretações judiciais. É indispensável que as decisões sejam acompanhadas de medidas que conectem a teoria à prática. A formação contínua dos policiais deve ser uma prioridade, capacitando-os a tomar decisões fundamentadas e juridicamente defensáveis, mesmo nas situações mais adversas, porém as variáveis do cotidiano são difíceis. Além disso, o diálogo entre as instituições deve ser permanente. Judiciário, Ministério Público e os diferentes órgãos do Executivo, incluindo as forças de segurança, precisam trabalhar em conjunto para formular diretrizes claras e objetivas que orientem as ações policiais sem comprometer os direitos fundamentais. O uso de algemas, nesse sentido, deve ser encarado como um recurso operacional legitimado pela necessidade do caso concreto, garantindo tanto a legalidade da ação quanto a segurança de todos os envolvidos.
A segurança pública não pode ser vista como responsabilidade fragmentada, mas como um esforço integrado e coordenado em prol do bem coletivo.
A construção de um modelo eficiente de segurança pública exige mais do que leis ou fardas. Exige um pacto social. Não se constrói paz apenas com decisões judiciais ou abordagens policiais. A verdadeira segurança nasce do equilíbrio: o respeito inegociável à dignidade do cidadão e a valorização incondicional do trabalho de quem arrisca a vida em defesa da sociedade.


Entre a severidade do Direito e a agilidade da prática policial, existe um espaço de equilíbrio que precisamos alcançar. Nesse espaço reside a essência de um Estado que se pretende não apenas ser democrático, mas justo e efetivo. Segurança pública não é uma batalha entre poderes, mas uma construção coletiva – e ela só será robusta quando Direito e realidade se olharem de frente e, juntos, traçarem um caminho comum.

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