O Conselho de Disciplina é o procedimento administrativo destinado a avaliar a permanência do militar na corporação. Em determinados casos, embora afastada a hipótese de exclusão, é aplicada sanção disciplinar, como a detenção. Nessas situações, surge uma controvérsia jurídica específica: qual o regime prescricional aplicável à penalidade imposta?
Ora, não são raros os casos em que o Conselho conclui pela aptidão do servidor para continuar integrando a corporação, impondo-lhe, todavia, uma penalidade. E é justamente nesse desfecho que surgem dúvidas, ao menos no campo processual, sobre o prazo prescricional incidente.
De um lado, há fundamento para considerar que, por se tratar de procedimento iniciado sob o Decreto Federal nº 71.500/72, o prazo prescricional de seis anos ali previsto continue a reger todo o percurso, inclusive o momento da sanção. A título de exemplo, há precedente do Eg. TJM/RS que aplicou o prazo prescricional de seis anos previsto no referido decreto ao procedimento disciplinar, com base na recepção desse diploma legal, in verbis:
APELAÇÃO. CONSELHO DE DISCIPLINA. PRESCRIÇÃO. LC Nº 10.990/97. DECRETO Nº 71.500/72. NÃO OCORRÊNCIA. A teor do art. 156 da LC nº 10.990/97, aplicam-se aos integrantes da Brigada Militar os regramentos gerais do Exército, incluído o do Conselho de Disciplina (Decreto Federal nº 71.500/72). A lei específica que regula a matéria da prescrição em Conselho de Disciplina é o Decreto nº 71.500/72, diploma recepcionado pela Constituição Federal com força de lei, e aplicável ao referido procedimento disciplinar por força do art. 44 e 45 da Lei Complementar nº 10.990/97. Não transcorrido o lapso de 6 (seis) anos previsto no art. 17 da Lei Federal 71.500/72 entre a entre a data dos fatos e a data de publicação da decisão administrativa que aplicou a penalidade, não restou implementada a prescrição. APELAÇÃO DESPROVIDA. UNÂNIME (TJM/RS, APC nº 0070097- 10.2022.9.21.0002/RS – 07/11/2022)
[ Art. 17. Prescrevem em 6 (seis) anos, computados da data em que foram praticados, os casos previstos neste decreto.]
De outro lado, identifica-se a compreensão de que, afastada a exclusão e imposta uma sanção disciplinar (como a detenção), passa-se a operar um regime jurídico distinto. Nesse caso, o militar, tendo sido declarado apto, se submete às normas do Regimento Disciplinar da Brigada Militar (RDBM). Ocorre que este é omisso quanto a prazos prescricionais, motivo pelo qual se tem adotado, por analogia, os prazos previstos na Lei Complementar Estadual nº 10.098/94, que rege os servidores civis.
Esse entendimento foi admitido em julgamento recente do TJM/RS, no qual, diante da conclusão do Conselho de Disciplina pela permanência do militar na corporação, considerou-se aplicável o RDBM (Decreto Estadual nº 43.245/04). Reconhecida a ausência de previsão expressa sobre prazos prescricionais nesse diploma, a Corte adotou, por analogia, o prazo de 24 meses previsto na Lei Complementar nº 10.098/94, aplicável aos servidores civis, para fins de análise da prescrição da penalidade administrativa de detenção.
Vejamos:
DIREITO ADMINISTRATIVO-DISCIPLINAR CÍVEL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSELHO DE DISCIPLINA. BOMBEIRO MILITAR. APTO A PERMANECER NA CORPORAÇÃO. CUMPRIMENTO DA SANÇÃO DISCIPLINAR DE DETENÇÃO. TUTELA PROVISÓRIA CONCEDIDA PELO JUÍZO A QUO. DECISÃO MANTIDA PELA CORTE. AGRAVO DESPROVIDO. MAIORIA.
I. CASO EM EXAME
1. Trata-se de agravo de instrumento interposto para modificar decisão do juízo a quo que concedeu tutela provisória de urgência para suspender os efeitos do Conselho de Disciplina.
II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO
2. Análise da presença dos requisitos do art. 300 do CPC/15 para a concessão da medida de urgência pelo juízo de origem.
3. Verificação, no tocante ao prazo prescricional, da norma aplicável ao procedimento instaurado contra o militar, que restou considerado capaz de permanecer na Corporação, após ter respondido a Conselho de Disciplina.
III. RAZÕES DE DECIDIR
4. Restando considerado apto a permanecer no Corpo de Bombeiros, o bombeiro militar passa a obedecer às regras previstas no Decreto Estadual nº 43.245/04 (Regulamento Disciplinar da Brigada Militar), legislação esta que não possui regras de prescrição e, portanto, consoante melhor jurisprudência a punição de detenção restou equiparada às previstas na Lei Complementar nº 10.098/94.
5. Presentes os requisitos do artigo 300 do diploma processual civil que evidenciam a probabilidade do direito (visto que prescrita a punição dada ao ora agravado) e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo (eis que deve, em face do contexto dos autos, preservar o direito do bombeiro militar até decisão final).
IV. DISPOSITIVO E TESE
6. O Pleno acordou, por maioria, vencido o Relator, negar provimento ao agravo de instrumento.
Tese de julgamento: “manutenção da decisão do juízo a quo, suspendendo os efeitos do Conselho de Disciplina até decisão final da ação”.
Jurisprudência relevante citada: TJM/RS, Agravo de instrumento provido. Unânime; Ag Inst nº 0090036- 16.2021.9.21.0000, Rel. Des. Fernando Lemos, j. 21/06/2021; Apelação Cível n.º 1000045-51.2017.9.21.0000 – 08/03/2017; Ap Cv nº 0070722-10.2023.9.21.0002 – 08/04/2024; Ap Cv nº 0070391-94.2024.9.21.0001/RS – 13/03/2025.
[ Art. 197 – A ação disciplinar prescreverá em:
I – 6 (seis) meses, quanto à repreensão;
II – 12 (doze) meses, nos casos de suspensão ou multa;
III – 18 (dezoito) meses, por abandono de cargo ou faltas sucessivas ao serviço;
IV – 24 (vinte e quatro) meses, quanto às infrações puníveis com cassação de aposentadoria ou disponibilidade, e demissão.]
É nesse ponto que se forma o cerne da controvérsia: pode o militar responder, até o fim, sob o mesmo regime especial que deu início ao procedimento, mesmo quando o resultado final se afasta da sua finalidade original? Ou seria mais coerente reconhecer que, a partir do momento em que se descarta a exclusão, muda-se também o regime jurídico que ampara o ato punitivo?
São visões distintas, ambas sustentadas em fundamentos jurídicos respeitáveis. E a resposta não parece óbvia. Enquanto a primeira busca preservar a integridade do procedimento iniciado, homenageando a especialidade do rito, a segunda valoriza a adequação normativa à natureza da sanção efetivamente imposta, com vistas a assegurar isonomia no tratamento entre militares estáveis e não estáveis.
Mais do que definir um posicionamento, o importante talvez seja reconhecer que o ordenamento, tal como se apresenta, exige constante análise de coerência entre o rito processual, o fundamento normativo e a natureza da penalidade. É nessa interseção que o julgador é convocado a refletir.
A prescrição, por sua natureza, opera como limite ao poder sancionador do Estado. Não só estabilidade, mas segurança jurídica. Porém, esse limite deve ser corretamente posicionado. O tempo, no processo, é fator de legitimidade. Isto é, a justeza da punição não está apenas no que se impõe, mas em como e quando se impõe.
Não é papel deste artigo firmar entendimento, nem tampouco sugerir modificações normativas. Seu propósito é mais modesto, até porque, do contrário, demandaria muitas laudas. O objetivo, afinal, é compartilhar uma inquietação recorrente na prática jurisdicional, com o intuito de fomentar a reflexão acadêmica (e, quiçá, prática do cotidiano brigadiano) sobre o tema.
Em meio a interpretações contrapostas, impõe-se que a análise dos casos permaneça, como sempre deve ser, fiel aos princípios constitucionais que balizam a atuação da nossa Justiça Especializada. E, enquanto persistirem interpretações em sentidos diversos, restará ao julgador o dever de ponderá-las, como exige a própria natureza da função jurisdicional.
Ao fim, permanece a ideia de que o rigor do direito não se mede apenas pela firmeza da norma, mas pela capacidade de reconhecer os contornos da realidade que julga, pois, como já defendia Aristóteles, a justiça é, por conseguinte, algo essencialmente humano.
