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Artigo: A Constituição de 1988 – Desafios e Perspectivas da Democracia Brasileira

Marco Antônio Moura dos Santos[1]

Promulgada em 5 de outubro de 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil, referida como Constituição Cidadã, “simboliza” um ponto crucial na transição do país para um “modelo democrático.” Como uma das declarações mais abrangentes de direitos fundamentais do mundo, essa carta magna se tornou um espelho das aspirações sociais e políticas do povo brasileiro.

Mais de três décadas após sua promulgação, celebra-se seu aniversário em um cenário caracterizado por instabilidade política, polarização intensa e riscos significativos à independência dos poderes. Atualmente, a Constituição se manifesta não apenas como um símbolo de emancipação, de libertação, mas também apresenta preocupantes sinais de desgaste que requerem uma análise aprofundada e atenção crítica.

O pacto social estabelecido em 1988 trouxe avanços consideráveis: eleições diretas, pluralidade partidária, liberdade de associação e imprensa, além de novas formas de participação cidadã. No entanto, a soberania “repatriada” ao povo enfrenta a dura realidade de uma representação política fragmentada e muitas vezes dominada por interesses efêmeros que minam a confiança pública.

As promessas inerentes a um Estado Democrático de Direito[2] enfrentam obstáculos como má gestão, clientelismo e o enfraquecimento das estruturas que equilibram os poderes.

 Apesar da existência de uma das mais robustas listas de direitos civis, políticos e sociais, a desconexão entre o texto legal e a realidade é alarmante: desigualdades persistem e grupos vulneráveis continuam encontrando barreiras no acesso às políticas públicas. Além disso, há uma constante contestação social acerca de decisões judiciais “polêmicas”, muitas vezes acompanhadas pela omissão dos outros poderes estatais e das instituições criadas para proteger os direitos da população, da sociedade organizada e do Estado constituído.

A dignidade humana deve ser encarada mais do que uma mera invocação retórica; ela é fundamental para o Estado Democrático de Direito. Nesse contexto, as contribuições teóricas de Ronald Dworkin e Robert Alexy são essenciais para compreender o abismo existente entre norma e a prática.

Dworkin[3] defende que o Direito não se limita a um conjunto fixo de regras; ele forma um sistema moral baseado nos princípios que expressam os valores da comunidade política. O julgamento em casos constitucionais exige integridade: deve haver coerência com os princípios da justiça e equidade ao invés da aplicação mecânica das normas. Sob essa ótica, a Constituição de 1988 deve ser vista como um compromisso moral com os direitos fundamentais; assim sendo, torna-se ainda mais grave a inércia dos poderes públicos em sua efetivação.

Alexy[4], por sua vez, distingue entre regras e princípios ao definir estes últimos como mandamentos que devem ser otimizados dentro das possibilidades jurídicas e fáticas. Isso implica que os direitos constitucionais não são absolutos; necessitam ser ponderados proporcionalmente com justificativas transparentes. No Brasil, a falta de critérios claros na ponderação entre direitos e interesses — aliada à excessiva judicialização da política — revela uma fragilidade argumentativa que compromete a legitimidade das decisões.

Portanto, uma análise conjunta das obras de Dworkin[5] e Alexy[6] demonstra que a Constituição requer um modelo interpretativo fundamentado em valores, capazes tanto de efetivar os princípios constitucionais quanto garantir previsibilidade nas ações dos poderes.

O Brasil vivencia tensões constantes entre Executivo, Legislativo e Judiciário evidenciando o desgaste do artigo 2º da Constituição. A decadência dos partidos políticos, a extrema polarização política e a “captura institucional[7]” constituem barreiras à renovação democrática. O conceito tradicional da separação dos poderes foi reinterpretado não apenas pela invasão das competências institucionais, mas também pela intervenção excessiva do Judiciário em questões políticas sem uma legitimidade democrática clara.

Esse cenário demanda reformas estruturais, que fortaleçam mecanismos responsáveis pela prestação de contas, para combater o crescimento do populismo autoritário. À luz do pensamento de Alexy isso configura-se como um problema institucional relacionado à “otimização”: sendo necessário estabelecer equilíbrio entre independência e harmonia dos poderes.

Sob o prisma de Dworkin nota-se uma falta significativa na integridade prática brasileira — com instituições tomando decisões por conveniência ao invés daquela coerente com valores constitucionais.

A “democracia constitucional” deve transcender a rituais periódicos como eleições; ela exige engajamento firme, compromisso vigoroso, com eficácia nos direitos humanos. É imperativo desenvolver políticas inclusivas (concebidas e implementadas) para todos os cidadãos, garantindo oportunidades justas no cotidiano.

O crescente aumento do fenômeno da desinformação, assim como manipulação regulatória e a subversão de instituições vigilantes, ou que deveriam ser, desafiam as bases sólidas do sistema democrático atual.

Para promover eficazmente os direitos fundamentais é necessário ir além das palavras: é imprescindível implementar educação cívica ativa; juntamente com fiscalização contínua; aliada ao comprometimento social genuíno, por parte das autoridades governamentais, em respeitar a legalidade constitucional.

Para Dworkin esse entendimento se concentra na “democracia como integridade”: onde cada cidadão deve ser tratado igualmente com respeito pelo governo; já para Alexy trata-se de maximizar igualdade digna segundo as possibilidades institucionais — dependente tanto do desenho institucional adequado quanto da vigilância cidadã eficaz.

O dia 5 de outubro, portanto,  deve transcender uma mera comemoração simbólica; pois representa sim um convite à reflexão sobre o profundo descompasso existente, verdadeiro abismo, entre as promessas contidas na Constituição  versus as realidades políticas contemporâneas no Brasil. Se interpretarmos esta Carta Magna como documento vivo, devemos analisá-la seguindo princípios morais, valores, conforme defendido por Alexy e Dworkin, garantindo assim que nossa democracia possua substância além da formalidade superficial.

A democracia juntamente aos conceitos centrais tais como dignidade humana, divisão equilibrada dos poderes, garantia e preservação de direitos fundamentais, precisa ser reafirmada diariamente pela sociedade, através da vigilância ativa e engajamento sério, aliando coragem política efetiva contra retrocessos iminentes ameaçadores à integridade institucional e que corroem nossa vida democrática.

 Será que teremos mais e melhores motivos para celebrar o aniversário da Constituição cidadã? Como diz o George Bernard Shaw[8]: “É impossível progredir sem mudança, e aqueles que não mudam suas mentes não podem mudar nada”. Portanto, para um aniversário mais feliz, um futuro melhor, precisamos mudar, mudar nossas mentes e mudar o mundo.


[1] Coronel QOEM Reserva da Brigada Militar e especialista em Integração e MERCOSUL (Ufrgs)

[2] A abordagem de Canotilho ao Estado Democrático de Direito está enraizada na ideia da Constituição como um “sistema vivo” de regras e princípios. Ele argumenta que as constituições não são instrumentos legais estáticos, mas estruturas dinâmicas que evoluem em resposta às transformações sociais. Essa perspectiva está encapsulada em sua obra seminal, *Direito Constitucional e Teoria da Constituição* (7ª edição, 2002), onde ele elabora a natureza dual das normas constitucionais – regras e princípios – e seu papel na estruturação de uma sociedade justa e equitativa

[3] – DWORKIN, Ronald. O Império Do Direito*. São Paulo: Martins Fontes ,2007.

[4] – ALEXY, Robert. *Teoria dos Direitos Fundamentais*. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

[5] – DWORKIN, Ronald. Levando Os Direitos a Sério. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes,2010.

[6] – ALEXY, Robert. *Teoria dos Direitos Fundamentais*. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

[7] OLIVEIRA, Jeferson Sousa. BAPTISTA CARDOSO, Carlos Henrique. Teoria da captura no setor público. In: Revista Estudos Institucionais, v. 10, n. 3, p. 902 – 926, set./dez. 2024

[8] Prêmio Nobel da Literatura de 1925,

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