Daniel Nardon está preso preventivamente por suspeita de lesar clientes em ações judiciais
Lucas Abati Guilherme Milman GZH
Um dos casos que mais chamou atenção na atuação do advogado Daniel Nardon, investigado por lesar clientes em supostas fraudes em ações judiciais no Estado, foi a abertura de mais de 130 processos no nome de apenas uma pessoa. O advogado está preso preventivamente desde o dia 15 de maio e teve a licença na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) suspensa.
O homem que teve o maior número de processos identificados até então é um policial militar aposentado, perfil que se encaixa na maioria dos clientes do advogado: servidores públicos aposentados e pensionistas. Em entrevista exclusiva à Zero Hora, o homem contou que passou a desconfiar de Nardon em janeiro deste ano, quando descobriu que não recebeu a totalidade do valor liberado em um alvará judicial.
— Eu descobri que ia sair R$ 28 mil. Aí eu questionei eles. Me disseram: “Nós vamos fazer o cálculo, e o financeiro vai te passar”. Demorou dois, três dias, e me passaram o valor: R$ 5 mil, que sobraram de R$ 28 mil — conta.
— Aí questionei de novo: “De R$ 28 mil, só me sobraram R$ 5 mil? E o restante?” Disseram: “Essa aí é uma parte que o banco fica, porque foi calculado assim, que os juros e a correção foram em valores menores, então nós temos que devolver para o banco” — diz o homem, que pediu para não ser identificado.
Não convencido com a resposta, o aposentado decidiu procurar outro advogado. Foi quando descobriu as centenas de ações movidas em seu nome, além de outros valores liberados em alvarás judiciais.
— Se eu tivesse conhecimento do valor de cada alvará que saiu, que foi pago para ele, o que sobraria para mim seria mais de R$ 100 mil, eu acredito — projeta.
Advocacia predatória
O caso do aposentado foi um dos que chegou ao conhecimento do Núcleo de Monitoramento do Perfil de Demandas, órgão ligado à Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), pela suspeita da chamada advocacia predatória, que acontece quando um profissional entra com ações em massa de forma infundada ou irregular visando o lucro.
— É uma lesão à Justiça, não só às pessoas, pelo custo em si de cada um desses processos, pela quantidade de juízes, pelas múltiplas ações — 50, 60, 80 —, quando se poderia fazer quatro ou cinco — avalia o advogado Diogo Teixeira, que agora representa o policial aposentado.

A sequência de ações foi identificada pelo próprio Tribunal de Justiça em outros casos semelhantes, com uma notificação enviada para a OAB em janeiro do ano passado, pedindo informações para instruir processos administrativos contra o advogado Daniel Nardon. Conforme apurado por Zero Hora, juízes de primeiro grau perceberam, por mais de uma vez, a suspeita de advocacia predatória nos processos e negaram as ações.
Na última semana, Nardon foi alvo de uma segunda fase da Operação Malus Doctor, que investigou o possível envolvimento de uma financeira no esquema. Para a defesa do advogado, as acusações são uma retaliação dos bancos, principais alvos das mais de 100 mil ações conduzidas por ele, que questionavam o juro de empréstimos contraídos por servidores públicos e aposentados.
— Dessas 100 mil ações, ele alega claramente, e fortemente vai provar isso, que não ficou com dinheiro de ninguém. Ele sempre fez e prestou contas às pessoas daquilo que elas tinham direito dentro das (ações) revisionais — argumenta Ricardo Breier, um dos advogados de Nardon.
“Tinha um monte de papel no meu nome, que eu não assinei”
Com mais de 20 ações movidas em seu nome, um casal de policiais militares aposentados também desconfiou da atuação do escritório do advogado ao acessar o sistema de consultas públicas do Tribunal de Justiça e descobrir que tinha processos com alvarás liberados. Os policiais aposentados afirmam que nunca tiveram contato direto com Nardon, mas sempre foram atendidos por outro advogado do mesmo escritório.
— Eu tinha valores a receber, recebi o comunicado de um alvará, que dava em torno de R$ 3 mil, R$ 4 mil o outro. A gente foi lá saber como eles iriam fazer para pagar, que o alvará estava lá havia um tempão. Disseram que iriam mandar para o contador, e eu recebi só R$ 300 — diz a mulher.
Sem respostas sobre os valores a receber, decidiram registrar um boletim de ocorrência na 19ª Delegacia de Polícia e fazer reclamações diretamente no escritório. Mesmo após isso, novas ações foram abertas no nome do casal.
— Tinha um monte de papel no meu nome, que eu não assinei, e valores que estavam saindo com o Judiciário para pagar os alvarás. Não recebi nenhum valor — afirma a aposentada.
Com novas reclamações do casal de PMs, o advogado representante do escritório fez uma proposta para resolver a situação.
— Ele puxou de uma pasta preta um envelope pardo com valores ali dentro, me disse que tinha média de R$ 7 mil, R$ 8 mil. (Disse) Que, primeiro, o doutor Nardon viu que tinha erro nas ações, que o pessoal descontou o que não deveria e que ele estava ali para resolver a minha situação. Eu disse que não era esse valor, que eu tinha um dinheiro a mais. Ele disse: “Vamos resolver essa parte” — contou o homem.

Operação Malus Doctor
A Polícia Civil deflagrou a Operação Malus Doctor em 8 de maio, cumprindo 74 mandados judiciais. A investigação apontou que o escritório havia movido cerca de 145 mil ações “potencialmente fraudulentas” — sendo 112 mil somente no RS e 30 mil em SP. O suposto esquema teria lesado cerca de 10 mil pessoas, com movimentações que somam R$ 50 milhões.
Além disso, foi revelado à época que Nardon foi responsável por 47% de todas as ações contra instituições financeiras no TJ‑RS, sendo o quinto maior litigante na Corte.

Após a operação, o advogado teve sua licença suspensa de forma preventiva pela OAB, impedindo sua atuação profissional. O TJ-RS também orientou que magistrados suspendessem os processos e que os autores regularizassem suas representações.
No dia 3 de junho, a Polícia Civil realizou a segunda fase da operação, com o objetivo de investigar uma financeira responsável pela captação de clientes. A instituição, que em tese deveria fornecer empréstimos e financiamentos, era usada para encontrar e atrair clientes em potencial para o escritório de Nardon.
Inquérito principal
Além dos inquéritos abertos para apurar cada caso de forma individual — inclusive os novos — o inquérito principal foi concluído na última sexta-feira (6). No documento de 76 páginas, ao qual Zero Hora teve acesso, a polícia aponta todas as condutas que expõem o funcionamento do esquema.
Como resultado do inquérito, o advogado foi indiciado por sete crimes: apropriação indébita, estelionato contra pessoa idosa, falsificação de documento particular, falsidade ideológica, uso de documento falso, patrocínio infiel e falsificação de documento particular.
Em nota, a defesa diz que se trata de “um desdobramento previsível, sobretudo em um contexto em que o rito formal da investigação tem sido, em grande medida, convertido em espetáculo midiático”.