“Que o sangue pare de clamar por sangue.” — Ésquilo, Oresteia
A decisão de Atena na tragédia grega ressurge no direito brasileiro, reafirmando que, diante da dúvida, deve prevalecer a razão e a clemência.
Tudo começou com um vento parado.
Agamêmnon, rei de Micenas e comandante das tropas gregas, via sua frota imobilizada antes de partir para a guerra de Troia. Os deuses exigiam um preço para soprar as velas: a vida de sua filha, Ifigênia. O pai obedeceu. O sacrifício foi consumado, os ventos voltaram a soprar, a guerra foi vencida, mas a casa de Atreu ficou encharcada de culpa. Nenhuma vitória é suficiente quando o sangue dos inocentes clama dos altares.
Anos depois, o rei regressa vitorioso. E é recebido não com aplausos, mas com a espada da própria esposa. Clitemnestra, irmã de Helena de Troia e mãe da menina sacrificada, mata Agamêmnon com a ajuda do amante, Egisto. Não age por ambição, mas por vingança. O crime gera outro crime, e o fio da tragédia volta a se esticar.
É então que o destino recai sobre Orestes, filho de ambos. Educado no culto da honra e da reparação, ele mata a mãe e o amante, cumprindo o dever de vingar o pai. Mas o preço é terrível: matar a própria mãe é violar o sangue, e contra esse tipo de culpa não há perdão entre os homens nem entre os deuses. As Erínias, divindades da vingança, passam a persegui-lo implacavelmente, atormentando-o onde quer que vá.
Orestes encontra refúgio no templo de Apolo, que o conduz até Atena, para ser julgado diante do primeiro tribunal da história: o Areópago. Doze cidadãos, escolhidos a dedo, escutam seu destino. Seis votam pela condenação, seis pela absolvição. O empate paralisa o tempo; é a própria humanidade hesitando entre o dever e a piedade.
É nesse instante que surge Palas Atena, deusa da sabedoria e da prudência. Ela não grita nem se impõe; fala baixo, mas com firmeza. Proclama que, na dúvida, deve prevalecer a clemência. E absolve Orestes. Aquele voto, simples, sereno, racional, muda para sempre a forma como o homem entende a justiça.
Mais tarde, os romanos chamariam essa decisão de “voto de Minerva”, porque Minerva é o nome latino de Atena, a deusa da sabedoria para um povo que fundou as bases do nosso próprio direito. E é daí que vem a expressão que atravessou os séculos: o voto de Minerva é o voto da razão sobre a fúria, da prudência sobre a vingança.
A tragédia termina com a transformação das Erínias em Eumênides — as “benfazejas”. A justiça, antes movida pela ira, torna-se racional. O sangue deixa de clamar por sangue. E o tribunal dos deuses cede lugar ao tribunal dos homens. É o nascimento simbólico do direito.
Dois milênios depois, essa mesma lição ressurge, discretamente, em uma norma jurídica. A Lei nº 14.836, de 2024, alterou o artigo 615 do Código de Processo Penal para dizer, com todas as letras, que “havendo empate em julgamentos penais, prevalecerá a decisão mais favorável ao indivíduo imputado”. Mesmo se o julgamento ocorrer com ausências ou impedimentos, o resultado deve ser proclamado de imediato.
Curiosamente, o Código de Processo Penal Militar, desde 1969, já dizia o mesmo: “no caso de empate, prevalecerá a decisão mais favorável ao réu.” A Justiça militar, tantas vezes tida por severa, guardava desde sempre a semente da sabedoria antiga.
Ao adotar agora essa regra no processo penal comum, o legislador reafirma uma verdade que atravessa os séculos: quando há dúvida, o Estado deve escolher a prudência. A justiça não é o brado da multidão, mas o silêncio ponderado da razão.
No fundo, a nova lei apenas reescreve, em linguagem jurídica, o gesto de Atena no Areópago. A deusa continua votando, desta vez nas páginas do Diário Oficial. E seu voto, ontem como hoje, recorda que o Direito não nasceu da vingança, mas da dúvida. E que, diante do empate, é sempre Minerva quem decide.





