‘Resort para delinquentes’: criticada por Paes, ‘ADPF das Favelas’ será julgada pelo STF nesta quarta
Prefeitura quer participar de ação no STF que restringe operações policiais
Por Felipe Grinberg, João Vitor Costa, Roberta de Souza e Vera Araújo — Rio de Janeiro O GLOBO
O julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, a chamada ADPF das Favelas, será retomado hoje pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A ação que estabelece critérios para operações policiais em comunidades do Rio poderá ter a participação da prefeitura da capital, que pediu ontem à Corte seu ingresso no processo como colaboradora. O município alega que o domínio do tráfico afeta o ordenamento urbano da cidade. O posicionamento se alinha com o entendimento do governador Cláudio Castro, que defende o fim das limitações impostas pela ADPF.
O prefeito Eduardo Paes (PSD) disse ontem ser “absolutamente contra” a ação que tramita no STF desde 2019. Na petição enviada ao STF, o município pede para ingressar como Amicus curiae (Amigo da corte, em latim), para contribuir com “informações relevantes para a resolução da controvérsia constitucional destacada nesta ação”.
— É óbvio que o Estado lato sensu, a Justiça, tem que fazer o controle da legalidade. Mas a impressão que a ADPF passa para as forças policiais e para os bandidos é que há uma restrição à ação policial. Não estou defendendo que a polícia não cumpra legalidades, mas a ADPF virou um elemento de constrangimento — afirmou Paes ao GLOBO, e completou: — Mais grave do que isso, ela virou uma desculpa para aqueles que não querem cumprir sua missão.
Em vídeo publicado em sua conta nas redes sociais à noite, o prefeito falou ainda que existe a sensação de que a cidade virou um “resort para delinquentes”. Na petição, a prefeitura alega que, “em áreas dominadas por organizações criminosas, fortemente armadas, os agentes públicos municipais não conseguem ingressar para desempenhar suas funções constitucionais”.
O documento mostra um levantamento sobre o número de barricadas pela cidade com base no Disque-Denúncia. O serviço recebeu 7.856 denúncias de junho de 2019 a maio de 2024, a maior parte em bairros da Zona Norte, principalmente nas áreas patrulhadas pelos batalhões de Olaria, Irajá e Rocha Miranda. “Organizações criminosas e forças paramilitares têm se aproveitado das restrições impostas às operações de enfrentamento ao crime organizado para expandir a sua influência territorial”, afirma a prefeitura.
Castro defende operações
Ontem, durante a reabertura dos trabalhos na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), Cláudio Castro argumentou que a questão da “extraordinariedade” das operações policiais imposta pelo STF precisa ser revista, já que essa medida “tira do povo, da comunidade, o direito de ter uma polícia ostensiva”.
— Eu duvido que, se fizesse o mesmo no Leblon, em Ipanema ou na Barra, não tivesse protestos. Então, são situações que a gente tem que entender até que ponto não estão fomentando um poder paralelo. Não tenho dúvidas de que não é um desejo da Suprema Corte, mas o Rio está sofrendo efeitos colaterais gravíssimos — disse Castro, lembrando que o Rio já cumpriu a determinação do STF de colocar câmeras nos uniformes dos policiais.
Antes de ir à Alerj, Castro postou um vídeo em suas redes sociais com o título “Caminho das armas” em que aparece ao lado de pistolas, revólveres e fuzis apreendidos. Ele destacou que, em 2024, foram retirados das mãos de bandidos 732 fuzis, “um recorde histórico” no estado. Segundo ele, “essas armas vêm de fora do país, atravessam fronteiras sem controle e alimentam o crime organizado”.
O secretário de Segurança Pública do Rio, Victor Santos, endossa as palavras do governador:
— A ADPF tem que acabar porque o Rio já cumpriu todas as exigências. Uma prova disso é a queda da letalidade policial. O que realmente está criando uma insegurança aos operadores na área de segurança é a questão da “excepcionalidade” (a polícia só pode fazer operação em casos excepcionais). Uma barricada seria uma “excepcionalidade”? Um criminoso com fuzil na laje também?
Em entrevista ontem na sede do Ministério Público do Rio, no Centro, o procurador-geral de Justiça, Antonio José Campos Moreira, defendeu a ADPF 635 como instrumento para o controle da atividade externa das polícias:
— Se o julgamento de mérito for nos termos propostos pelo Ministério Público, a ADPF vai até permitir ao MP um controle mais efetivo da atuação policial, sem que isso signifique uma restrição ao trabalho da polícia. A polícia deve trabalhar, a polícia deve atuar. E quem deve definir quando, onde e como a polícia atua é a própria corporação, não alguém em um gabinete climatizado. No entanto, a atuação precisa ocorrer dentro dos limites da lei.
Do lado a favor da ADPF das Favelas, estão dezenas de organizações e instituições como a ONG Redes da Maré, a Fiocruz, a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entre outras, que defendem a redução da letalidade policial. Além do uso de câmeras nas fardas dos policiais e da excepcionalidade das operações, que devem ser planejadas e comunicadas ao Ministério Público, há outros pontos considerados importantes pelas entidades: a definição efetiva de um plano de redução da violência policial, a criação de um monitoramento contínuo por parte do STF após o julgamento da ação, e investigações independentes das mortes em operações para evitar impunidade.
Advogado vê resultados
O advogado Daniel Sarmento, que entrou com a ADPF 635, representando o Partido Socialista Brasileiro (PSB), ressaltou que já houve êxito na redução da letalidade policial por conta da arguição:
— A ação já gerou efeitos positivos. Em 2019, 1.814 pessoas morreram vítimas de operações policiais. Já em 2024, houve uma queda de 61%, com 699 mortes. Uma ação que salva mais de mil vidas já é um sucesso. Não tenho dúvidas de que foi a ADPF que proporcionou esse resultado.
Apesar dos números positivos, o advogado enfatizou a importância do julgamento de hoje para que a redução ainda seja maior. Sarmento citou que, numa operação da semana passada no Complexo do Alemão, seis pessoas morreram, sendo um policial militar, um suspeito de ligação com o tráfico e quatro inocentes.
— Nunca houve vedação da operação policial. O que defendemos é que o combate ao crime tem que ser feito dentro da legalidade. Quais são os pontos importantes: o policial tem que fazer uso da câmera, uma ambulância precisa estar a postos para o socorro das vítimas, e o MP tem que ser avisado sobre as operações, assim como as escolas — ressaltou.