Aumentos concedidos às cúpulas dos poderes contradizem discurso que aponta reajustes como ‘irresponsabilidade’
Flavia Bemfica Correio do Povo
O projeto de reforma do IPE Saúde reavivou dentro da Assembleia Legislativa um tema que o governo do Estado pretendia desvincular dos debates: o da concessão de reajustes para o funcionalismo estadual. Desde quando a reestruturação do sistema de saúde dos servidores estava na fase de estudos, o Executivo passou a ventilar a máxima de que atrelá-la a necessidade de uma revisão geral de salários seria ‘pura irresponsabilidade’, em função da necessidade de cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
A estratégia, contudo, acabou sendo atrapalhada por iniciativas anteriores, oriundas de todos os poderes, para garantir diferentes percentuais de elevação nas remunerações das cúpulas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, todas aprovadas pelo Parlamento nos últimos meses. Apesar de o Executivo elencar uma série de fatores para explicar a ‘diferença’ de tratamento entre cúpulas e bases, na prática o tema pressiona parlamentares aliados e alimenta a artilharia de integrantes da oposição, tenham eles votado contra ou a favor dos aumentos para os que já possuem as maiores remunerações.
“O fato é que os altos salários estão todos garantidos, assim como os de carreira. Então, vamos precisar conversar sobre esta questão”, resume o líder da bancada do PT, a maior da oposição, deputado Luiz Fernando Mainardi. Ele votou favoravelmente a todos os projetos que elevaram os subsídios no topo dos poderes.
“É uma questão de justiça, mas também é simbólica. O governo, além de não conceder reajuste, ainda pretende cobrar mais pelo IPE Saúde. Mas, ao mesmo tempo, apoia e promove benesses para o topo da pirâmide. Então, em que pesem os argumentos da LRF, da separação entre poderes, ou dos diferentes impactos decorrentes do número de pessoas que recebem aumentos, o que passa é um sinal de que o sacrifício é só para quem está embaixo”, enumera a líder da bancada do Psol, deputada Luciana Genro. Ela votou contra os aumentos dos maiores salários.
Entidades representativas de servidores e uma fatia da oposição argumentam que as receitas do IPE Saúde deixaram de crescer porque, nos últimos oito anos, ocorreu apenas uma revisão geral dos salários do funcionalismo, de 6%, paga em 2022. Pressionam ainda mais os debates o fato de que, na comparação com a esfera federal, há um descompasso. A revisão geral para os funcionários estaduais, que aqui chegou no ano passado, para o funcionalismo federal foi concedida em 2016, quando a maioria das categorias recebeu 10,5% de reajuste.
Agora, enquanto o Executivo estadual rechaça a possibilidade de uma nova revisão no curto prazo, o federal deu reajuste linear de 9% aos servidores civis, incluindo aposentados e pensionistas, mais 43,6% no auxílio-alimentação, com primeira parcela paga a partir de junho. Além disso, na esfera federal, no caso do sistema de Justiça e do Legislativo, as majorações nos subsídios não ocorreram apenas nas cúpulas. Também foram sancionadas elevações para servidores, com os mesmos percentuais e prazos de pagamento.
Como ocorreram as elevações para os maiores vencimentos
O primeiro escalão do Executivo gaúcho teve a majoração dos subsídios aprovada pelos deputados estaduais em um pacote votado no fim de dezembro passado. Nele, um dos textos garantiu aumento de 32% no salário do governador e de 47% para o vice-governador e secretários de Estado. O governador, que recebia R$ 26.841,71, começou a perceber R$ 35.462,22. O vice e os secretários passaram de R$ 20.131,29 para R$ 29.594,45.
Um dos argumentos utilizados foi o da defasagem nas remunerações da cúpula do Executivo. Usualmente corrigidas a cada quatro anos, em 2018 elas não haviam sido majoradas em função do entendimento de que era necessário dar o exemplo de austeridade frente às dificuldades no caixa. Outro projeto, de iniciativa do Executivo, aprovado também no pacote de dezembro, reduziu o número de servidores em cargos de comissão (CCs) e funções gratificadas (FGs), mas aumentou salários de funcionários em cargos de chefia.
No caso do sistema de Justiça estadual, os parlamentares chancelaram neste mês de maio textos que seguem a previsão constitucional de aumentos proporcionais para as cúpulas de acordo com os reajustes dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), concedidos a cada quatro anos. Neste último, a elevação foi de 18%, escalonada: 6% a partir de 1º de abril de 2023, 6% a partir de 1º de fevereiro de 2024 e 6,13% a partir de 1º de fevereiro de 2025. O subsídio dos ministros do STF, que era de R$ 39.293,32, chegará a R$ 46.366,19 em 2025. Já os beneficiados no Estado, que até abril tinham subsídios de R$ 35.462,00, passarão a receber, ao final, R$ 41.845,49.
A cúpula do Legislativo gaúcho, por sua vez, conseguiu garantir em dezembro passado, além do aumento, uma alteração importante. Para a atual legislatura, os deputados estaduais tiveram seu subsídio mensal estabelecido em 75% daquele fixado para os membros do Congresso Nacional no mesmo período. Com isso, ficou consolidado o recebimento do teto definido constitucionalmente, garantido um aumento maior e majorações até o final da legislatura, ao invés de um valor fixo para os quatro anos. Até o ano passado, era praxe na Assembleia do RS definir os aumentos em valores, fixando um total em reais dentro do limite constitucional.
A vantagem foi possível após a Câmara dos Deputados e depois o Senado, também em dezembro, aprovarem um projeto que igualou os subsídios de deputados federais e senadores aos de ministros do STF. A isonomia está prevista na Constituição, mas, até então, não era aplicada. Com a aprovação do texto, os salários dos congressistas tiveram aumento em janeiro e, os dos deputados estaduais, em fevereiro. Em abril, quando entrou em vigor a primeira parcela do aumento para o STF, congressistas e estaduais tiveram nova elevação nos vencimentos. O mesmo ocorrerá em fevereiro de 2024 e de 2025. Por causa da mudança, enquanto os subsídios dos ministros do Supremo terão elevação de 18%, os dos senadores, deputados federais e estaduais subirão 33,3%. Senadores e federais, que recebiam R$ 33.763,00 em 2022, chegarão a R$ 46.366,19. Estaduais, que no ano passado ganhavam R$ 25.322,25, alcançarão R$ 34.774,64.
Também em dezembro, os parlamentares estaduais aprovaram modificações no plano de cargos e carreiras dos servidores do Legislativo, que possibilitaram aumentos nos vencimentos.
“Não existe café de graça, alguém tem que pagar”, diz secretário
À frente das negociações do projeto para a reforma do IPE Saúde, e ciente de que o pleito por uma nova revisão geral é apontado como prioritário hoje por todas as entidades representativas de servidores, o secretário chefe da Casa Civil, Artur Lemos, evita descartar categoricamente a possibilidade de um novo reajuste linear, mas também não faz projeções de quando poderá acontecer. Ele falou ao Correio do Povo sobre os pontos que estão tensionando os debates. Confira os principais trechos:
Correio do Povo: Uma revisão geral dos salários do funcionalismo está descartada em 2023?
Artur Lemos: Este ano tende a ser de muitas dificuldades e não tenho o que fazer em relação a revisão geral. Não posso infringir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Não queremos continuar nesta situação e não negamos que precisamos buscar revisões alternativas. Mas também não queremos antecipar futuro para não gerar expectativas. Isso não quer dizer que sejamos intransigentes. Fizemos todas as reformas, acabamos com os atrasos nos salários, concedemos uma revisão geral de 6% em 2022, efetuamos reajuste nas diárias. Então, inexiste alguém que não tenha recebido aumento. E cada ponto que é concedido significa um impacto que varia de R$ 350 milhões a R$ 400 milhões na folha. Temos que ter cuidado, controle e compromisso. Este ano está sendo de replanejamento.
CP: Os aumentos nos subsídios das cúpulas dos poderes não prejudicam esta argumentação do governo?
AL: Estamos falando de outros poderes, e de regras estabelecidas na Constituição. Além disto, há uma diferença muito grande de tamanho, quando falamos dos compromissos que o Executivo tem.
CP: Os subsídios do governador, vice e secretários também foram majorados. Era necessário?
AL: Eu tendo a não fazer comparativos. Cada atividade tem suas características. Comparar atividade A com atividade B não nos leva a lugar nenhum. Precisamos valorizar cada carreira com o seu devido valor. Precisamos conseguir reter talentos. Fizemos, por exemplo, algumas mudanças no ano passado em cargos e funções. Houve críticas de que foram para chefes. Sim. Mas, antes, nem chefes as pessoas queriam ser. Até o baque nas receitas que tivemos no ano passado, nosso trabalho era para trazer as pessoas de baixo para cima, e não o contrário. Desejávamos entrar neste ano revisitando algumas carreiras. Porém, a estratégia foi afetada pela queda nas receitas decorrente da redução das alíquotas de ICMS determinada pela União. Isto impactou a despesa com pessoal, nos forçou a ultrapassar o limite prudencial e nossas metas ficaram prejudicadas.
CP: A União está concedendo um reajuste linear para os servidores civis de 9%.
AL: O governo federal pode emitir títulos da dívida, deixar de corrigir tabela do imposto de renda, tem um rol muito maior de possibilidades. O estadual arrecada basicamente ICMS e IPVA e possui muito mais limitações. Então, quem de fato está em débito nesta questão é o governo federal.
CP: O senhor e outros integrantes do Executivo citam com frequência a redução nas alíquotas do ICMS, principalmente sobre combustíveis, mas já foi negociada a reposição de parte das perdas do ano passado. E, agora, com as mudanças definidas pelo Confaz, o ICMS sobre óleo diesel, gás de cozinha e gasolina no RS será maior. A projeção não é de aumento de receita do ICMS?
AL: Vamos ter que acompanhar o consumo para saber se vai haver recuperação. Não podemos dizer que é uma retomada. Mês a mês precisaremos acompanhar a movimentação na receita. Sobre as perdas decorrentes da redução nas alíquotas do ICMS, a União não fará a reposição integral. E o que perdemos durante seis meses será pago em dois anos e meio. Via abatimento da dívida.
CP: O governo não teme que o projeto da reforma do IPE Saúde, se aprovado como foi encaminhado, provoque uma saída em massa de usuários do sistema, conforme projetado por diferentes entidades de servidores?
AL: O projeto que enviamos é o que compreendemos ser o mínimo para que o plano pare de apresentar déficit, consigamos negociar honorários com os médicos e o IPE Saúde volte a prestar um bom serviço. Posso dar um exemplo: para quem não tem dor de cabeça, se eu vender uma aspirina a R$ 1,00, é caro. Mas, para quem tem dor, se eu cobrar R$ 10,00, não vai ser caro. A reforma tem reflexo no que se tem de mais precioso, a saúde. Eles dizem que há o risco de os dependentes saírem. Mas, se o plano for bom, não vão sair. E não existe café de graça, alguém tem que pagar. Os servidores aceitam colocar netos ou filhos no PAC (o Plano de Assistência Complementar, para filhos maiores de 24 anos, enteados e netos, entre outros, no qual já é cobrada mensalidade), mas não aceitam o reajuste que propomos. O universo de dependentes que não paga hoje é de aproximadamente 250 mil pessoas. Se todos eles saíssem, seriam 250 mil a menos no IPE Saúde, em um universo de um milhão. O argumento é de que impactariam o SUS. No SUS o universo é de oito milhões de usuários.
CP: O reajuste da tabela de honorários médicos acontecerá quando? Já há projeção de valores?
AL: Após a aprovação do projeto a mudança na alíquota é imediata. O início da cobrança dos dependentes terá um prazo de 90 dias, para que os segurados decidam o que pretendem fazer. E depois de aprovada a lei nos reuniremos com a classe médica para encaminhar a questão do reajuste nas tabelas.